terça-feira, 12 de março de 2019

Autoridade e Progresso

Cada indivíduo tem sua própria potência de ação e sua própria consciência. Apesar disso, um sujeito muitas vezes não é capaz de desenvolver em si mesmo qualidades que percebe em outros, assim como frequentemente não é capaz de realizar por conta própria algo que deseja. A autoridade se estabelece por causa de desigualdades nas virtudes, habilidades e possibilidades dos indivíduos. Por conta dessas desigualdades, frequentemente precisamos nos organizar em torno de certas figuras para que determinados fins sejam alcançados. Existe, portanto, um aspecto fatual nos vínculos de autoridade. Os fatos por si mesmos, porém, não estabelecem a autoridade tal como a vivenciamos nem a sustentam ao longo do tempo. Figuras de autoridade são construídas e mantidas através de interpretações, símbolos, expectativas e outros elementos que envolvem fundamentalmente a imaginação e a cultura. Nenhum indivíduo é capaz de vencer conflitos infinitamente, nem de ter permanentemente a razão em um tipo qualquer de assunto, nem de agir sempre de forma moralmente exemplar ou de atingir a realização de todos os seus planos. Se considerarmos as potencialidades humanas de um ponto de vista estritamente factual, são todas passageiras e imprevisíveis. Um indivíduo que é reconhecido como um grande sábio, por exemplo, pode a qualquer momento cometer um equívoco grosseiro. Nós confiamos que esse equívoco não acontecerá apesar de racionalmente ser perfeitamente possível, esperando obter dessa autoridade alguma certeza que não encontramos em nós mesmos. Aquele que promete essa certeza depende de seus seguidores para atingir um determinado fim. Nesse vínculo de dependência, o seguidor oferece sua ação e cede seu juízo, enquanto a autoridade oferece sua virtude e uma promessa de progresso.

Aquele que segue uma autoridade não é, portanto, tão passivo no processo quanto as aparências costumam sugerir. Seguimos um indivíduo porque desejamos obter disso a realização de algum objetivo, ou porque percebemos na figura em questão algo de valor que queremos cultivar fora de nós mesmos. Essa espécie de relação desenvolve grande parte da identidade de um sujeito. Embora a autoridade possa ser pensada e explicada a partir de razões, o processo básico de identificação é na sua maior parte irracional. Um indivíduo tende a proteger a reputação de suas autoridades em um movimento de autopreservação – que frequentemente se torna agressivo. A princípio, esse vínculo e o respectivo impulso defensivo podem ser desconstruídos pela via da razão. Por exemplo, um indivíduo pode compreender que associa potencialidades suas a alguma figura externa, deixando de ter autonomia em uma situação na qual isso é possível e desejável. Quando um sujeito se permite questionar as razões ou os planos de uma figura de autoridade a relação de poder se enfraquece, pois a sensação de desigualdade entre as partes diminui. Na prática, porém, esse processo costuma ser bastante difícil e depende de muitos fatores além da razão e das evidências. Existe na consciência daquele que segue uma autoridade um desejo, uma ideologia, um sistema de valores, algo que permite que a relação entre as partes se estabeleça. Essa relação pressupõe e reforça diversas definições nas consciências e nos desejos dos indivíduos envolvidos. A consciência de um sujeito é moldada por suas relações de autoridade e grande parte de seu raciocínio crítico é assim suspenso, substituído por um sentimento de confiança ou humildade diante de certas figuras.

Autoridades não são principalmente seguidas por humildade, reconhecimento, confiança ou qualquer sentimento do gênero. O indivíduo projeta na figura de autoridade seu próprio sistema de valores e suas próprias expectativas, e por isso defende através de sua servidão seus próprios interesses e, acima de tudo, sua identidade. O desejo pela autoridade em si mesma frequentemente consta entre esses interesses. Por exemplo, um soldado pode defender a autoridade de seus superiores em grande parte por desejar tais posições de poder, defendendo a ordem da instituição como subordinado para ser obedecido pelas gerações seguintes. O mesmo ocorre em diversos outros contextos, como em universidades ou em igrejas. Os indivíduos mais obedientes costumam ser ao mesmo tempo os mais sedentos por poder, pois investem grande parte de suas energias em vínculos de dependência. Oferecendo a uma autoridade o reconhecimento que a figura deseja para si, o indivíduo ganha a atenção de seus superiores na hierarquia em questão. A partir dessa atenção e da contribuição para a ordem vigente, o indivíduo passa a ser percebido como alguém que pode eventualmente ser o sucessor de tais posições de poder. Em muitos contextos, como no caso das universidades, o desejo por poder é mascarado por ambas as partes. A competência de uma figura qualquer é frequentemente declarada como justificativa para o reconhecimento privilegiado que recebe de seus seguidores, apesar de outros indivíduos de capacidades semelhantes ou superiores não serem respeitados da mesma forma por estarem fora da hierarquia em questão. Da parte daqueles que ocupam alguma posição de poder, frequentemente ouvimos justificativas como “apenas sigo a palavra de Deus”, “esta metodologia que eu ensino é objetivamente superior às outras”, “estou aqui representando a vontade do povo”, etc. A disputa por poder é o elemento central dessas relações, e o poder em questão costuma ser nocivo ou dúbio quando os indivíduos não assumem responsavelmente aquilo que desejam ou esperam por algo irrefletidamente.

A autoridade se prolonga não por direito nem por virtude, mas essencialmente por um jogo de poder desenvolvido em torno de desejos e símbolos – ou seja, se trata principalmente de um jogo estético. No que diz respeito à realização dos objetivos enfeitados pelo discurso, os resultados são bastante variáveis. Em algumas ocasiões o poder simbólico de uma autoridade conduz seus seguidores ao desenvolvimento ou facilita a realização de alguma finalidade importante para todos os envolvidos. Em outras, se trata de uma projeção supersticiosa baseada em confusões e imposições inconscientes que perpetua nos seguidores um estado de dependência inútil ao mesmo tempo nocivo e confortável para todos os envolvidos. Portanto, o valor social de uma autoridade pode e deve ser discutido racionalmente pela medida dos benefícios que proporciona em comparação aos custos que provoca. Posto que a falibilidade é um aspecto da natureza humana, nenhuma autoridade tem valor intrínseco, e qualquer figura ou relação do gênero deve ser submetida de tempos em tempos ao juízo da razão. Se assumimos que uma relação de autoridade se justifica como um fim em si mesma o fazemos por esquecimento e irracionalidade, geralmente motivados pelo medo ou pelo conforto cego. No caso de autoridades tradicionais, podemos buscar a compreensão de suas origens e podemos avaliar que espécie de valores, finalidades e benefícios existem nessas relações. O poder da razão sobre os vínculos de autoridade é limitado – e precisamente por isso deve ser usado ao máximo, para equilibrar nossas tendências autoritárias. Aquele que segue uma autoridade fazendo pouco uso da razão corre o risco de ceder suas energias a um parasita que não cultiva nada de valor e demanda cada vez mais servidão. A distinção entre autoridades úteis e inúteis nos aproxima de hierarquias honestas, enquanto valores sentimentais convidam a superstição e o exagero no poder.

Autoridades intelectuais costumam ser do tipo supersticioso. De um ponto de vista lógico, a autoridade da figura que faz uma proposição nunca é um fator relevante para a verificação de sua validade. Se o sistema conceitual apresentado por um indivíduo contém erros como contradições e etapas argumentativas que não se seguem umas das outras, nenhuma posição de autoridade o exime de estar incorreto. De um ponto de vista empírico, apenas a verificação e o registro rigoroso dos fenômenos podem servir de “autoridade”. Quando confiamos em uma autoridade intelectual, tomamos um atalho para o conhecimento, que julgamos ser seguro em função do histórico ou da reputação da figura em questão. Por exemplo, se sou um leigo em química, confio no parecer de um doutor na área em vez de procurar por conta própria os conhecimentos relevantes. Se trata de um processo natural e útil quando utilizado nos contextos adequados. Porém, a autoridade intelectual frequentemente assume aspectos impertinentes, supersticiosos e preguiçosos. Quando assumimos que o título de autoridade de uma figura garante que suas afirmações e orientações são verdadeiras e seguras, confiamos supersticiosamente. Confiamos corretamente na autoridade quando adotamos suas orientações ou opiniões como as mais racionais até que razões ou evidências melhores sejam encontradas. Essa condição é de extrema importância. Note também que a expectativa de certeza não existe nesse caso. É muito comum que figuras de autoridade rejeitem bons argumentos quando contrariadas em um debate, pois o próprio indivíduo tende a exagerar o significado de sua posição simbólica. O público, por sua vez, costuma aceitar a desmoralização do caminho mais racional e as afirmações circulares e soberbas de autoridade intelectual, pois esse estado de dependência intelectual é mais fácil que a constante pesquisa que as questões complexas e importantes exigem.

Uma relação de autoridade deve ser avaliada de acordo com sua finalidade e sua eficiência nessa direção. Por exemplo, a posição de um mestre se mantém justificada enquanto os estudantes se desenvolvem intelectualmente sob seu direcionamento. Uma vez que tal autoridade se torna um peso sobre o verdadeiro potencial dos estudantes – já desenvolvidos o suficiente para a autonomia intelectual – a relação deixa de fazer sentido. É natural que os estudantes mantenham uma relação de respeito e gratidão com o mestre, mas não é proveitoso que continuem dependendo de suas orientações ou que se mantenham estritamente ligados ao sistema de ensinamentos sob o qual se desenvolveram para a autonomia – que pode produzir novos conceitos, novos ensinamentos, etc. Se uma relação de autoridade atinge sua finalidade, deixa de ser necessária. Se caminha indefinidamente sem atingir seu fim, é inútil, uma falsa promessa que deve ser abandonada. Entendida racionalmente, a autoridade é útil ou inútil, nada além disso. O prestígio, a reverência e os demais sentimentos do gênero são saudáveis na medida em que não impedem a observação racional e constante das finalidades e da eficiência da autoridade em questão, e essa observação raramente é preservada diante da idolatria. A autoridade cria um sentimento de identidade segura que havia sido perdido ou ameaçado na imaginação dos seguidores. A servidão é preferível a muitos quando comparada com as inseguranças causadas pela liberdade, como o peso da responsabilidade, a dúvida, a imprevisibilidade, etc. A figura autoritária que busca compulsivamente a afirmação da própria imagem costuma sofrer também dessa insegurança. Desse encontro só se pode obter um desperdício cíclico de energia, posto que o medo produz ameaças à identidade infinitamente.

sábado, 28 de julho de 2018

Espiritualidade e Religião

Teorias, fórmulas, conceitos, tradições e símbolos são apenas ferramentas que podem tornar um pouco mais aparente e maleável a pequena parte da verdade que pode de alguma forma ser apreendida. Observamos o efeito contrário, porém, quando tais ferramentas são utilizadas de forma compulsiva. Nenhuma fonte de sabedoria, conhecimento ou inspiração é aproveitável diante de interpretações compulsivas e da expectativa por orientações absolutas. Nada é capaz de esclarecer ou elevar o indivíduo que transfere suas responsabilidades intelectuais para uma autoridade qualquer -- seja religiosa, filosófica ou científica. Antes da religião enquanto instituição da sociedade existe a espiritualidade enquanto dimensão da condição humana. Um indivíduo pode, por exemplo, acreditar que não existe nada que possamos chamar de alma e ainda assim cuidar de sua espiritualidade, se compreender realmente em que isso consiste. Igualmente, os preceitos de qualquer religião podem ser seguidos ao mesmo tempo com absoluto rigor e nenhuma espiritualidade verdadeira. Existe uma característica filosófica da consciência humana que costuma ser ignorada ou distorcida por disputas políticas ou entre identidades (praticamente sinônimos atualmente). A existência da religião é quase sempre explicada ou como um resultado direto de alguma vontade divina, ou como um fruto do medo e da ignorância, uma espécie de pré-filosofia. Essas são explicações superficiais. Ouço e leio que o conceito "religião" deriva de "religare", que significa algo como religar, reconectar. Mas o que é ou deveria ser reconectado? A alma do indivíduo seria reconectada a Deus? "Alma" e " Deus " são conceitos específicos, expressões possíveis de questões universais para as quais existem inúmeras respostas. 

Antes de qualquer definição do que seria a "consciência", dizemos que somos seres conscientes porque possuímos um processo interno que é aparentemente ausente nos objetos que nos cercam. Nós experimentamos coisas como pensamentos, emoções, percepções, memórias e desejos enquanto o meio material parece indiferente a esses processos. Embora a subjetividade, a cultura e nossos interesses em geral nos pareçam em essência mais importantes e nobres que simples objetos e mecanismos, a natureza não parece partilhar dessa preferência, ou mesmo das distinções que nos organizam. Uma pessoa repleta de história, sonhos, sentimentos e conhecimentos pode morrer ou sofrer imensamente por transformações em seu corpo que são eventos comuns na natureza. A interrupção ou continuidade de um processo vital particular é um evento pequeno se considerado objetivamente. O corpo no qual de alguma maneira se manifesta o sujeito apenas é, se forma e eventualmente se dissolve em outra coisa tal como todos os objetos, elementos químicos, mecanismos -- tal como tudo que racionalmente delimitamos com palavras desse tipo. O sujeito, porém, não apenas é, mas desenvolve propósitos, valoriza isto ou aquilo, sente e acredita, cria relações com outros sujeitos que não parecem ser apenas de causa e efeito. De alguma forma existimos em tal condição, como seres dotados de uma dimensão que para nós mesmos é tudo, a "alma", a "liberdade", a "vida", apesar de tudo isso ocorrer em um meio que não nos comunica nenhuma predileção por nossos propósitos ou por qualquer tipo de sentido. Diante dessa aparente dissonância entre o subjetivo e o objetivo questões se tornam inevitáveis, como se alguma resposta tivesse que existir, como se nossa existência tivesse que ter uma finalidade.

Uma vida enquanto interioridade, subjetividade ou espírito depende de condições materiais, de uma vida enquanto mecanismo biológico, físico e químico. No espírito se manifesta uma série de anseios, apegos e propósitos que parecem ausentes nos elementos físicos dos quais sua continuidade depende no nível prático. Diante disso, o sujeito tende a buscar uma relação entre seus propósitos interiores e a natureza, uma relação de integração e continuidade entre a consciência e o meio material. O sentimento ou desejo de "religare" consiste principalmente nisto, no estabelecimento de uma conexão entre o fato da vida, a vontade interna do sujeito e o mundo que apenas é. Essa conexão pode se refletir em inúmeras construções psicológicas e culturais, variando da ideia de que as forças da natureza são deuses com características humanas até a ideia de que a natureza é racionalmente construída e pode ter todas as suas estruturas examinadas pela razão humana. De qualquer forma projetamos nossas faculdades internas no meio ao nosso redor como se tivessem algum significado central no universo. Pela simples observação, nada nos conduziria a tais crenças. Nossas ciências empíricas, doutrinas religiosas, conjecturas e preces parecem ser apenas fenômenos tanto quanto o vento, a chuva, a morte de uma árvore -- embora alguns desses fenômenos nos causem impressões mais fortes de pertencimento, importância, escolha, etc. Uma religião é uma instituição cultural que estabelece e ensina uma forma de unir o subjetivo e o objetivo, uma construção que revela no físico características espirituais, propósitos maiores que os óbvios, um encantamento do mundo através do qual o indivíduo adepto encontra um pertencimento e uma segurança sobre si mesmo. Esse interesse fundamental existe também sob formas diversas na ciência, na arte e na filosofia. Nenhum desses campos é superior aos demais.

Você pode acreditar que o universo é absolutamente material e que a vida se desenvolveu essencialmente por acaso a partir da matéria, que a vida é uma obra racional de uma inteligência suprema ou simplesmente não acreditar em nada. De qualquer forma, está posto que nossa razão não é o centro do universo, seja porque existe outra superior ou porque não existe realmente nenhuma. Nada obriga a natureza a ser entendida por nós. Todos os mistérios, teorias e verdades são fenômenos exclusivamente humanos. A racionalidade é apenas um aspecto da humanidade e uma ciência é apenas um modelo de racionalidade. A necessidade que muitos sentem de provar e demonstrar suas escolhas através da ciência não parte de nenhuma qualidade especial dos modelos científicos, mas sim de um velho desejo que em outros tempos a religião foi mais qualificada para atender. Se trata do desejo por uma sensação de controle sobre a realidade, uma sensação de que sabemos o que a realidade é, que sabemos como conhecer seus mínimos detalhes ou interagir com o mundo sabendo o que nos espera. No nível social, isso se reflete em um desejo por uma palavra de autoridade sobre as razões de outros indivíduos. Afirmações como "isto é um fato" surgem mais frequentemente como simplificações dogmáticas em debates que como juízos cuidadosamente construídos ao longo de rigorosas pesquisas. O cultivo de dimensões irracionais não é necessariamente ilusório e o fato de que uma determinada doutrina não cabe nos padrões atuais do que é uma racionalidade científica significa muito pouco, especialmente se levarmos em conta que interpretar o mundo é apenas um dos muitos objetivos humanos possíveis, apenas um aspecto da vida -- o buddhi, a inteligência que separa em partes e analisa, entre os tantos outros aspectos da inteligência, entre os tantos outros atributos do universo. A espiritualidade não é necessariamente irracional apenas porque não é formalizável como discurso científico, e qualquer valor ou pratica que seja irracional não deixa de ter sua dignidade apenas por esse fato. Não se pode raciocinar honestamente sem a consciência de que a razão humana é limitada, tanto no sentido de não ter alcance infinito quanto no sentido de não ser o único nem o maior dos propósitos.

A separação conceitual rígida entre as áreas de atuação como a filosofia e a ciência é de todo arbitrária. As divisões que facilitam a prática (por exemplo a distinção de que um laboratório não é uma igreja) são muito frequentemente tratadas como se fossem mais que apenas arranjos práticos que tornam a sociedade mais eficiente. Não existem fenômenos exclusivos da filosofia, da ciência, da arte, da religião ou de qualquer outro nome que se separa dos demais apenas porque nos comunicamos e organizamos dessa forma. De fato, o uso de termos como esses no sentido de áreas do conhecimento é recente, contemporâneo da cultura de especialização que educa indivíduos como se cada dimensão da existência humana precisasse de uma formação distinta para passar a existir ou ser acessada. Para além dos documentos e dos meios de convivência, todas as questões religiosas existem na ciência tanto quanto o recíproco é verdadeiro. Acontece que muitas vezes, como um meio se especializa em abordar certas questões mais claramente que outras, as próprias questões são consideradas como se fossem intrinsecamente pertencentes a determinadas áreas. A atenção a temas como a vida após a morte é relevante para a ciência tanto quanto para qualquer religião particular, entretanto tais questões costumam ser associadas aos conceitos específicos que determinadas religiões produziram como forma de abordá-los. O hábito com tais separações e apegos faz com que muitas vezes um indivíduo deixe de cultivar uma dimensão de seu ser apenas porque sua formação é em "outra área" ou porque não participa de uma comunidade específica. A solução ocidental de que o domínio da religião é um e o domínio da ciência é outro acaba aumentando as piores tendências em ambos, e os movimentos de diálogo geralmente acabam em posturas de prepotência de ambas as partes. A maioria das dificuldades na relação ocidental entre ciência e religião é causada por uma pobreza filosófica que existe tanto nas comunidades científicas quanto nas religiosas -- e também entre os filósofos acadêmicos. A cultura de especialização atua apenas na direção contrária do desenvolvimento filosófico tanto do indivíduo quanto da sociedade.

A capacidade que um indivíduo tem de manter uma postura filosófica consciente é um dos aspectos que concilia a racionalidade com o restante, que concilia as teorias com os desejos, a observação com a imaginação. O abandono da filosofia ou a adesão inconsciente a um sistema conceitualmente pobre pode resultar em um empobrecimento da própria vitalidade, porque a sabedoria é essencial para o investimento de energia em caminhos que desenvolvem a vida. Cada questão ignorada é uma porta fechada, um caminho possível que a consciência ignora. Talvez um exemplo torne isso mais claro. Afirmo que a temática da vida após a morte e sua importância não dependem da crença em nenhum conceito de espírito, de céu, reencarnação, etc. Um indivíduo chegará, por praticamente qualquer processo de observação ou reflexão, à conclusão de que a vida como a experimentamos sofre em algum momento uma transformação ou ruptura, que chamamos de morte. Tudo indica que quando o indivíduo morre, a vida ao seu redor continua. Se eu, com minha história, meus anseios, meus conceitos de bem e mal, sei que a vida continuará no mundo após minha morte, minhas preocupações vão além de minha longevidade. Sei que quando eu morrer as pessoas e projetos que amo continuarão no mundo, e dessa consciência surge uma série de questões éticas, pragmáticas e existenciais fundamentais. Meus descendentes terão acesso a recursos sociais, como tratamento médico disponível e adequado? Serei lembrado por alguém? E tal lembrança será o tipo de lembrança que me agradaria? Os projetos nos quais acredito hoje continuarão se desenvolvendo? O que eu posso fazer para que minha vontade continue manifesta mesmo após minha morte? Um indivíduo perde a atenção a algo que o afeta essencialmente se abandona temáticas como essas. A simples possibilidade de pensar nessas questões afeta a sensação que o sujeito tem de si mesmo. Mesmo que não exista nenhuma vida desencarnada após esta, não estamos livres das consequências de quem somos agora, porque a projeção de tais desdobramentos existe no presente e tem um forte efeito psicológico, talvez tanto mais se ignorada ou dissimulada com distrações. A reconciliação com o mundo depende de uma relação consciente com a "vida após a morte" ou, simplesmente, com a posteridade. Sem conciliação com o mundo futuro a existência presente rapidamente se esvazia, oscilando entre o tédio, a distração e o sofrimento.

A espiritualidade pode ser definida como a sensibilidade e o cuidado com a conexão entre a consciência particular e o universal. Essa sensibilidade é dada em grande parte através da apreciação de outras subjetividades, e no geral através da apreciação do mundo como algo mais que apenas um objeto ou uma coleção de eventos. Ter ou não um encanto pelo fato da existência independe de qualquer sistema teórico específico. É possível que um sujeito profundamente adepto de uma religião pratique os preceitos em questão como uma relação quase completamente formal e particular com um conceito de Deus que apenas serve para espelhar suas necessidades -- um traço muito comum na religiosidade ocidental -- bem como é possível que um cientista de crenças absolutamente materialistas estude a natureza em um espírito de comunhão com o universo. Além da sensibilidade, o cuidado com essa conciliação entre "Deus" e "alma" se dá através de rituais e narrativas. Embora o positivismo tenha sido historicamente associado ao exemplo máximo de atitude objetificadora diante do mundo, foi sob tal influência que foi construída a Igreja Positivista do Brasil, com a proposta de cerimônias em celebração a grandes figuras para a ciência e para a filosofia. Existe uma compreensão bastante sábia sobre a importância da dimensão simbólica nessa iniciativa. Um culto a Einstein pode lhe parecer uma proposta excêntrica, mas observe que rituais semelhantes acontecem o tempo todo na vida acadêmica. A autoridade que a citação de um autor renomado provoca no meio acadêmico me parece francamente um tipo de delírio -- mas entendemos que dar esse grande sentido ao nome de certas figuras cria uma sensação de pertencimento ou de maior envolvimento com o conhecimento para muitas pessoas, talvez a maioria. A importância existencial desse tipo de processo exemplifica bem como o aspecto espiritual da vida humana é por essência laico. Se trata antes de tudo de um encanto com a existência ou, ao menos, com um meio do qual se participa e que poderia igualmente ser considerado de forma cínica ou "objetiva". A esterilização dessa rica irracionalidade não nos aproximaria em nada da verdade, mas antes intensificaria os quadros de depressão que são tão comuns atualmente. A vida como um ciclo de sobrevivência e reprodução sem nenhum sentido maior é uma narrativa bastante triste entre as tantas valorações possíveis, todas igualmente ligeiramente racionais em um universo que é claramente maior que a razão humana.


quarta-feira, 22 de março de 2017

As Desvantagens do Estudo

O estudo e a sabedoria costumam ser associados como se existisse uma proporção incondicionalmente positiva entre os dois. Na mentalidade mais comum, e que está no alicerce da grande maioria de nossas instituições de ensino e pesquisa, o estudo traz apenas benefícios para o desenvolvimento intelectual de um indivíduo. Entretanto, existe um elemento supersticioso nessa mentalidade aparentemente simples e intuitiva. O estudo ocupa tempo e memória, usa recursos, cria hábitos e dependências pragmáticas, o estudo (em particular o acadêmico) determina o indivíduo em diversos aspectos, abrindo determinadas possibilidades enquanto fecha outras. Um especialista sacrifica seu olhar ingênuo, abrangente e intuitivo para obter um olhar rigoroso, experiente, específico. O tempo investido na absorção de informações e em procedimentos rigorosos não é investido na criatividade, que não surge ou se desenvolve espontaneamente com a experiência -- a capacidade de formular e propor envolve toda uma série de desenvolvimentos psicológicos e existenciais. A criatividade depende de aspectos íntimos de cada um que não surgem pela pressão de regras e avaliações, mas de um "rigor" mais profundo e espontâneo. Considerando que o tempo de vida de um indivíduo é limitado, a dedicação ao estudo e a dedicação à criação devem ser balanceadas racionalmente, de acordo com os objetivos finais de cada um na vida intelectual. A tendência atualmente é que um indivíduo simplesmente aceite o perfil de "formação" desenhado por uma instituição e aplicado por seus encarregados sem raciocinar muito sobre o assunto, inclusive porque tal perfil geralmente acompanha uma série de valores, frequentemente irrefletidos, que permeiam o meio escolar e o acadêmico. Seja por "humildade" ou por almejarem a "excelência", muitos indivíduos não refletem filosoficamente sobre suas metas na vida intelectual  enquanto ainda estão no começo de uma "formação". Uma vez que se investe durante vários anos em uma carreira e em um tipo de mentalidade, isso deixa de ser uma escolha.

Considero que as vantagens e virtudes associadas ao estudo são excessivamente elogiadas. É muito comum, especialmente no meio acadêmico, a crença de que quanto maior for a soma de referências conhecidas por um indivíduo, maior é seu valor como intelectual -- independentemente do que o sujeito de fato faz ou não faz na prática com os conteúdos que absorveu. Enquanto isso os aspectos da vida intelectual relacionados à criatividade, como a coragem de se desenvolver explicações sob a própria responsabilidade e a capacidade de se recombinar e subverter elementos de teorias existentes para que novos problemas possam ser abordados, aspectos como esses são deixados ao acaso em nossas instituições, como um conjunto de milagres que aparecem apenas pela graça divina em alguns iluminados, como se tais aspectos da vida intelectual não fossem cultiváveis (ou passíveis de repressão) nos processos de formação básica e superior. Nas poucas ocasiões nas quais a originalidade é considerada como parte de uma avaliação, isso acaba tendo um efeito negativo. O fator criatividade ou originalidade é cobrado sem um processo de experimentos que prepara o aluno ou aluna para isso. É evidente que alguém que na grande maioria de sua educação se prepara apenas para decorar, reproduzir e devolver não vai produzir nada interessante em um momento repentino e sob pressão no qual a criatividade é exigida em um trabalho. A maior parte de nossa educação é um processo de correção e castração do intelecto, e no meio desse processo alguns autodeclarados libertários nos criticam pela mediocridade e pela hesitação que são forçadas no resto do tempo. Existe um ponto no qual a cobrança de conteúdos (ou mesmo a admiração aos que colecionam uma soma de conhecimentos) se torna simplesmente uma seleção que recompensa a mediocridade e a normalidade, um sistema de reforço negativo que não deixa espaço para a criatividade, ou mesmo para a "inovação", que surge com tanta frequência em documentos e discursos sobre a educação.

Chegamos tão facilmente a esse ponto porque ainda glorificamos o estudo e o acúmulo de informações como absolutamente bons e sem custos. A crítica da educação "conteudista" é simplesmente um senso comum agora. As insuficiências e contradições que permanecem na prática da educação são um sinal de que a crítica deve ir além, de que existem ainda muitos preconceitos a serem destruídos -- e de que alguns aparentemente superados ainda persistem. Sendo assim, me focarei em expor as desvantagens do estudo. Não negligencio que os benefícios do estudo existem, independentes dos exageros e superstições comuns. A baixa qualidade daquilo que costuma ser celebrado como "excelente"(leia-se: bem adequado) no meio acadêmico não se deve apenas ao insuficiente incentivo da criatividade, mas também ao peso que as normas impostas sobre as pesquisas e comunicações exercem justamente contra alguns estudos mais profundos e rigorosos que os medianos. É através do estudo que buscamos os elementos particulares que são recombinados na criação de obras originais -- que são "criadas" e "originais" nesse sentido bem específico, de existirem com um propósito atualizado pelo indivíduo que as elabora, de serem obras que partem de algum anseio profundo, e não simplesmente da repetição mecânica de padrões institucionais ou culturais. As teorias científicas que lidam com o mundo melhor que as anteriores são modelos elaborados e atualizados que combinam aspectos dos anteriores com o acréscimo de possibilidades teóricas que já existiam antes, mas que não eram reconhecidas ou consideradas viáveis. Existe nisso um elemento de criatividade, mas é evidente que ninguém poderia construir um novo modelo para explicar o mundo sem estudar as informações e teorias já disponíveis. Ninguém que buscaria criar uma obra original tentaria fazê-lo ignorando as já existentes -- o interesse do criador também o motiva a estudar. Entretanto, observo que não estamos passando por nenhuma escassez de estudiosos, citadores e comentadores. A erudição costuma ser pensada como se fosse o caminho seguro para a sabedoria, o ideal de formação intelectual que apenas o ambiente acadêmico pode concretizar. Iniciemos então com algumas considerações sobre a erudição.

Primeiramente, devemos notar que a erudição, o nível elevado de estudo em diversos campos, não existe apenas na forma de uma formação acadêmica. Isso é importante porque em diversas discussões nas quais as instituições de ensino superior são em algum sentido questionadas, frequentemente surge o discurso de que a recusa dos moldes acadêmicos necessariamente é uma recusa da erudição e do espírito científico como um todo, uma apologia da originalidade sem base. A erudição muitas vezes é considerada como se fosse uma qualidade intrinsecamente acadêmica, quando realmente o meio acadêmico favorece a formação de especialistas, e o tipo de estudo que aprofunda a especialização. Nas universidades, qualquer um que se compromete com a carreira acadêmica tem a constante necessidade de provar sua competência (andamento dos estudos). Disso resulta que seus estudos são feitos a partir daquilo que pode ser formalizado e exibido com frequência e facilidade. Quando um aluno de graduação propõe para si um projeto de pesquisa ambicioso, ele logo é corrigido por um superior. Qualquer indivíduo experiente sabe que um projeto precisa ser muito simples e focado para ser formalizável nos moldes acadêmicos sem uma quantidade exorbitante de trabalho (com formalismos). Especialistas não se aventuram, nem no processo de formação, nem depois. Por outro lado, um indivíduo que estuda não tanto para ser validado por algum público quanto para explorar as possibilidades intelectuais e práticas da humanidade não carrega essa tarefa. O erudito independente pode mudar sua linha de pesquisa no instante em que sua vontade de conhecer muda de direção, pode estudar referências que não são famosas ou que tem má fama, pode adotar o ritmo que corresponde à sua capacidade de assimilação, não precisando se preocupar com sua capacidade de produção. Aqueles que estudam por pura vontade são livres em suas pesquisas, enquanto os acadêmicos estudam sob um sistema de recompensas e punições nas universidades. Os benefícios financeiros e práticos que uma universidade oferece acompanham uma série de compromissos formulados pelas demandas, propósitos e crenças daqueles que regulam a instituição. O comprometimento com uma instituição é diferente da finalidade que se busca através de tal vínculo. Em geral, alguém deve buscar a correção institucional se não acredita em sua própria disciplina ou capacidade. Os resultados excelentes tipicamente são obtidos sem a correção e sem o apoio de qualquer sistema de regras que alivie o peso da responsabilidade de cada um sobre si.

O conhecimento de diversas obras e artes clássicas certamente favorece a abertura de diversas possibilidades intelectuais -- mas até que ponto? Somos seres finitos com mentes finitas, com capacidades de armazenamento e aplicação limitadas. Um semideus poderia facilmente estudar todo o legado do conhecimento construído em milênios de história humana e ainda criar a partir disso mais dez milênios de obras originais. Um ser humano, porém, é limitado no tempo e no espaço. Em uma vida inteira estudando (sendo otimista, digamos 95 anos de vida com estudos desde os seis), um indivíduo não conseguiria apreender um décimo de tudo que "precisa" saber. Tal sujeito morreria sem terminar sua seleção de leituras "imprescindíveis", e nunca teria acesso a muitas outras referências que consideraria como elementos básicos de sua "formação" se pudesse ter a mais vaga noção da existência de tais obras. Isso não é um fato contemporâneo -- essa limitação se aplicava também a Platão, e também a dez gerações antes dele. A estipulação daquilo que é fundamental para que um indivíduo possa "estar formado" é arbitraria, primeiramente porque indivíduos diferentes se decidem por objetivos diferentes, o que significa que o conjunto de referências, experimentos e exercícios necessários para uma "formação" variam muito de indivíduo para indivíduo. Além disso, os conjuntos de "conteúdos fundamentais" não são formulados em um processo rigoroso de pesquisas e experiências, mas simplesmente pelo imaginário de alguns especialistas e pela repetição dos padrões já observáveis no meio acadêmico. O objetivo de se dar conta de um conjunto específico de conteúdos antes de que o indivíduo se atreva a experimentar e criar é ou frívolo ou impossível. A necessidade de garantia dos resultados nas pesquisas intelectuais é uma ficção acadêmica, um erro grosseiro em um universo no qual eu não sei se vou estar vivo para digitar mais uma frase ou se você estará vivo(a) para terminar este parágrafo. No fim das contas, se um indivíduo deseja alguma mudança intelectual ou mesmo cultural em um sentido amplo, é melhor que esse sujeito se arrisque, que faça algo mesmo que imperfeito, mesmo que injusto, mesmo que não precisamente embasado. É notável que grandes eruditos como Nietzsche e Schopenhauer ativamente ignoravam diversas referências e não tratavam os autores que estudavam com nenhuma espécie de preciosismo, enquanto é muito popular entre os eruditos e especialistas acadêmicos a ideia de que a obra de um autor precisa ser conhecida em seu conjunto antes que possa ser criticada, como se a possibilidade de erro ou injustiça implicasse em desonestidade intelectual.

A propósito, a intolerância ao erro é um dos elementos que levam ao estudo compulsivo dos mesmos temas, referências -- até das mesmas proposições. As pesquisas acadêmicas, mesmo antes de começarem, são corrigidas uma dúzia de vezes até que a possibilidade da pesquisa não chegar ao seu resultado esperado seja eliminada. Isso ocorre sob diversas formas; em algumas áreas, um "recorte" é feito até que um texto com interpretações perfeitamente seguras diante de suas referências bibliográficas seja viável, enquanto em outras a pesquisa é aprovada quando examina algo que certamente será verificável, algo cuja a existência e os meios de verificação já são bem estabelecidos, e existem ainda outras nas quais a busca por dados é permitida em assuntos nos quais já existem dados de diversas outras fontes sobre o assunto da pesquisa. O que se observa em qualquer um desses casos é que a correção de uma pesquisa, desde seu projeto, sempre busca garantir que ela terá os resultados previstos. Em muitos casos é considerado válido que uma pesquisa chegue à conclusão de que sua hipótese inicial era incorreta, mas nunca é considerado válido que uma pesquisa conduza à conclusão de que pesquisar foi inválido -- a conclusão de que a própria questão foi um fracasso nunca aparece nos resultados acadêmicos. Isso tudo deve lhe parecer muito natural, mas observe o seguinte: para que uma pesquisa tenha qualquer possibilidade de descobrir algo, tal pesquisa precisa para tanto ter também a possibilidade de não descobrir absolutamente nada. Sem essa condição, a pesquisa não está realmente aberta o suficiente para expandir o repertório de informações da academia. Uma pesquisa, na medida em que é garantida desde o início, não é uma pesquisa, mas apenas um estudo pessoal. Quando se faz uma "pesquisa" com uma base segura em um conjunto fechado e bem estabelecido de referências, o resultado da pesquisa já era esperado de início. Nada foi acrescentado ao conjunto de conhecimentos das universidades, mas apenas ao conjunto de conhecimentos do indivíduo em particular que fez a "pesquisa", realmente o estudo através do qual o sujeito obteve instrução naquilo que já era conhecido de um ponto de vista coletivo. Entendo que durante uma graduação esse seja o procedimento adequado, embora a nomenclatura "pesquisa" seja aqui incorreta. Entretanto, o mesmo padrão se mantém amplamente presente em pesquisas conduzidas por doutores, que ativamente se declaram pesquisadores. Se mascara em toda parte a possibilidade do erro como se toda carreira acadêmica progredisse linearmente, sem nunca retroceder ou perder absolutamente sua direção. A maioria dos especialistas acadêmicos recicla e recicla os mesmos conjuntos de referências por uma questão de segurança, uma segurança que evita o erro evitando também o desconhecido -- e também a originalidade, a utilidade pública, a honestidade intelectual, etc...

O erro, e até a ingenuidade são bastante saudáveis para aqueles que tem uma curiosidade sincera por um assunto. Esses, quando não encontram no já estabelecido respostas satisfatórias, logo se empenham na formulação de suas próprias. Esse processo, simultaneamente de estudo e de criação, certamente passará por muitos fracassos, muitas etapas imperfeitas, muitas contribuições nada originais, um trajeto do qual um observador nunca imaginaria que uma obra magnífica poderia ser o resultado. A comparação entre os resultados atuais de quem está vivo, em construção, e as obras dos clássicos é injusta e inutilmente desestimulante -- principalmente porque os clássicos já se desenvolveram ao longo de suas vidas e já passaram tanto pelo período de aperfeiçoamento de suas obras quanto pelo longo período de reconhecimento por parte da tradição, que costuma ser póstumo. Os momentos nos quais um estudante descobre que uma ideia sua que julgava ser original existe no texto de algum autor consagrado em uma forma muito mais perfeita são realmente tristes desencontros, porque tal conhecimento no fim das contas tende apenas a uma decepção, em nada produtiva. Realmente seria melhor até mesmo para a filologia se mais estudiosos se aventurassem em muitas ideias e obras próprias antes de seguirem para a especialização nas obras alheias, mesmo que tais esforços não produzissem nada de valioso ou original. Acontece que as grandes obras são apreciadas melhor por indivíduos que experimentaram semelhantes caminhos e ideias por conta própria, porque assim o sujeito entende as reflexões da obra em um nível mais profundo, mais íntimo, no nível de alguém que se defrontou também com tais questões, que aprecia realmente o peso das críticas, experiências e proposições da obra. O gosto adquirido por pressão da tradição não se compara ao gosto de quem se defronta de um ponto de vista íntimo com uma questão ou possibilidade. Mas a formação de especialista se orienta precisamente na direção do perfil seguro, previsível, até medíocre... Os parâmetros institucionais que estabelecem o que é uma "formação" acabam também fixando um, digamos, "gosto normal", um conjunto de Kants, Hegels e Foucaults que, embora tenham de fato obras de importância, são cultuados pelos iniciantes simplesmente por serem chamados de autores relevantes. O mais comum é que pessoas se impressionem ao ouvirem uma citação desses autores mesmo quando não conhecem suas obras ou questões. Esse comportamento talvez seja inevitável incidentalmente, mas desafio qualquer um a negar que tal hábito é propositalmente reforçado pelos citadores profissionais de tais figuras. O fato do respeito a várias dessas figuras ser amplamente justificado não deve omitir o fato de que ele geralmente surge antes de qualquer experiência com suas obras. Existem também obras omitidas por esse direcionamento.

Eu adoraria excluir de minha mente não o conhecimento das obras de vários desses autores, mas o conhecimento de que tais obras são famosas, respeitadas, "essenciais". Quem negará que a fama de um autor cria um viés prévio no leitor? Sem o conhecimento de categorias como "analítico", "positivista", "pós-moderno" e "conservador" muitos textos seriam lidos sob outras cores. E não se trata apenas de um viés nos hábitos de leitura e interpretação. Ultimamente tenho estudado o cristianismo lendo obras de Kierkegaard e Pascal -- mas por quê precisamente Kierkegaard e Pascal, em vez do pastor que prega na igreja próxima de minha casa, ou de qualquer sujeito disposto a acompanhar minha inquisição ao cristianismo pessimista? Mesmo o mais aparentemente simplório indivíduo irá revelar muito sob uma boa dose de maiêutica -- isso quando as aparências e preconceitos não nos enganam por completo. Os conteúdos estudados pesam sobre a imaginação e sobre o processo de tentativa e erro de um indivíduo, mas existe ainda o peso do próprio conhecimento de que tais referências são estudadas por outros, um peso que seja por afeição ou repulsa direciona a curiosidade e a atenção também para além dos hábitos de leitura. Não saber qual é a moda, quem são os renomados, quem são os renegados, isso é uma grande fortuna que muitos esbanjam inadvertidamente. E existe ainda a pressão afetiva que a própria figura de um especialista em um autor exerce sob seus orientandos para que eles nunca se desviem de seu catecismo. Mas não é o processo de "formação" precisamente uma série de pressões desse tipo, que direcionam o indivíduo para ser o que se espera dele? Para pensar o que se imagina que ele pensaria? Como antes mencionado, uma ideia geral (para um grupo de alunos) de "formação" negligencia que indivíduos diferentes têm necessidades intelectuais básicas diferentes. Aquele conjunto normal de conteúdos tende realmente a ser um acúmulo de entulho em diversos pontos para todos os alunos submetidos ao "essencial" de doutores egocêntricos. De fato, isso é em grande medida considerável inevitável na educação que se pretende inclusiva; uma sala de aula com quarenta alunos acaba resultando nesse tipo de inadequação. Entretanto, a compulsão acadêmica pela "formação" e pelo espetáculo da celebração dos nomes famosos torna essa consequência mais severa.

A ideia de uma formação no nível superior pode ser respeitada no seguinte sentido: em qualquer dado meio de discussões, existem referências que são citadas amplamente. Se um indivíduo pretende participar desse meio, é positiva uma formação que o permita entender tais referências. O que se pode oferecer institucionalmente é apenas instrumental, um viés básico que permite a interação com a produção acadêmica. Aqueles que falam com orgulho "minha formação" cometem um engano: se trata de nossa formação, nossa mediocridade, nossa normalidade, que nos organiza. Todo o resto, se for autêntico, não é uma formação, mas uma jornada -- aqueles que afirmam que são formados afirmam realmente que optaram pelo conforto, por uma identidade em torno dos feitos até então. Esses querem realmente desfrutar dos benefícios da "autoridade" acadêmica ainda em vida, querem estar determinados intelectualmente antes da morte -- assim desfrutam de feitos moderados. Uma carreira acadêmica de sucesso começa com uma desistência, um pedido de clemência. Ao contrário, o estudioso que é também criador não se define, não "se forma" enquanto ainda tem energia para algo de valor. Quando um autor se fixa, se encontra em decadência, parou de se transformar, suas obras já são os sucessos e fracassos que tal sujeito expressou em seu tempo de vida. Para o nível fundamental, a ideia de formação pode ser um pouco mais ampla, dado que nesse campo os alunos estão ainda em desenvolvimento, mesmo de um ponto de vista fisiológico. Entretanto, para além de técnicas racionais básicas, os conteúdos ensinados devem ter muito mais o papel de inspirar do que o papel de determinar. Estudando um texto de um autor que fez uma descoberta ou formulação importante, o estudante não deve ser compelido a tomar tal resultado como uma referência fixa tanto quanto deve ser estimulado a se inspirar pelo exemplo da qualidade de tal obra -- mais que absorver seu conteúdo, o estudante deve entender, mesmo se intuitivamente, as características de uma obra que eleva a humanidade, para que tal sujeito tenha alguma chance de construir obras semelhantes apesar de toda a pressão para que sejamos normais e medíocres. Embora eu simpatize com todas as demandas para que as instituições de educação sejam melhor administradas e sustentadas, tenho que ser franco: raramente se encontra um único professor capaz de inspirar intelectualmente seus estudantes em algum sentido atualmente, e a maioria dos que acreditam ser desse perfil constam entre os piores repressores do espírito e da criatividade.

Professores admitidamente medíocres não são indivíduos derrotados. São seres nobres e valiosos. Quem recebe a graça de ter aulas com um profissional mediano sabendo que não está diante da excelência no assunto tem a chance de um dia ir além daquelas reflexões, sabendo que está indo além. Enquanto isso, a desgraça comum é que o tipo mediano faça o que for preciso para passar por excelente, para mostrar mais profundidade intelectual que de fato tem no assunto em questão, ou até em geral. Através de uma postura característica de "autoridade intelectual", de uma série de gestos e maneirismos, de uma técnica típica de citar e declamar, muitos infelizes iniciantes são enganados e tomam o normal por excelente. Se é comum que o aluno sensato trace suas primeiras metas abaixo das alcançadas por seus mestres, um sujeito atormentado por charlatães dessa estirpe irá mirar ainda abaixo do senso comum, irá se tornar alguém que domina apenas os gestos associados a uma figura intelectual. Se um professor, além de admitir que é apenas mediano, admite também que não é aberto, que faz na sala de aula um papel de autoridade e ponto final, esse ser humano poderia ser coroado como santo em nossos tempos de (apenas) discursos a favor da crítica, da pluralidade, da democracia. etc. É muito frequente, em particular nas universidades, o caso do hipócrita que organiza uma roda de cadeiras na sala de aula para depois cobrar leituras específicas, fichamentos e quaisquer outros métodos atrasados de avaliação enquanto encara seus alunos e alunas nos olhos... Quando uma autoridade afirma que é aberta ao diálogo mas nunca muda seus planos em função da interação e ainda reproduz a maioria dos padrões das autoridades comuns, observamos a tirania de alguém que, além de gostar de mandar, gosta de passar por progressista. Os mestres admitidamente medíocres cobram pouco, não fazem questão de invadir o espírito de ninguém. Exigem sem meias palavras o que devem exigir e são abertos no restante. Esses tipos muitas vezes são excelentes professores naquilo que pretendem ensinar, porque não gastam energia com fingimentos e de fato prestam atenção nos comportamentos de seus alunos. Enquanto isso, os falsos excelentes cobram volumes e volumes de tarefas em nome de uma imagem de "seriedade" em seus cursos, distorcem os padrões de qualidade e até o critérios de verdade de seus infelizes aprendizes, e ainda substituem a autoridade institucionalmente outorgada pelo autoritarismo através da chantagem afetiva. Tudo no meio universitário atual conduz o sujeito formado a praticar o segundo perfil, e esse tipo nunca se responsabiliza -- o fingimento os isenta de tudo.    

Um dos motivos para essa tendência repressora nos formados é também mais uma das desvantagens do estudo institucionalizado : a autoridade intelectual. Um processo de formação não é apenas um estudo ao longo do tempo. No período em questão, o indivíduo está sujeito a uma série de hierarquias, de influências, de reforços negativos e positivos. Uma formação diz respeito à capacidade que um indivíduo tem de tolerar e introjetar as estruturas de autoridade presentes nas instituições de ensino, antes de ser relacionada com os conteúdos a serem estudados. Uma vez que um indivíduo termina um processo de assimilação da autoridade, está pronto para assumir também tal posição -- e sente um impulso nessa direção. Entretanto, o conhecimento, o raciocínio e a pesquisa combinam muito pouco com estruturas de autoridade. Isso porque, posto que a autoridade intelectual se baseia em conhecimentos e formulações, o que impede que alguém que não passou pelo processo de formação questione efetivamente ideias fixadas por um doutor ou algo semelhante? A única forma de se garantir a autoridade intelectual ao longo do tempo é a repressão (ou corrupção) do diálogo. Se iniciantes puderem debater temas com formados de seres humanos para seres humanos, é natural que em diversos momentos se prove que não existe um abismo intelectual entre um grupo e outro. Como a autoridade intelectual nas universidades depende justamente dessa ilusão, os professores universitários adquirem ao longo da formação um repertório de truques para que situações de diálogo aberto sejam evitadas. Um desses truques é a substituição de teorias por referências. É evidente que um iniciante não conhecerá o mesmo volume de nomes em francês e alemão que um doutor conhece, então no meio universitário se transforma justamente isso, a capacidade de citações por minuto, em critério de verdade. No âmbito político de uma universidade, é comum que professores se comportem como verdadeiros políticos corruptos -- com a diferença de que um político corrupto ao menos é racional o bastante para se beneficiar enquanto prejudica o público... No ambiente escolar, também é comum que a autoridade dos professores se torne um entrave intelectual. Embora seja justificado que no ambiente escolar os valores e hábitos dos estudantes sejam corrigidos em muitos aspectos ao longo de uma formação, essa correção é facilmente exagerada, criando um ambiente de todo repressor e constrangedor na sala de aula -- um ambiente que racionalmente deve ser odiado. Quantos traumas se somam e se agravam não por causa de práticas de bullying e coisas assim, mas pela forma como o ambiente escolar é introduzido e fixado nas vidas das crianças e adolescentes? As autoridades do meio e seus dogmas tem um papel muito maior nisso do que se reconhece nos discursos mais frequentes sobre os problemas da educação.

Uma posição de autoridade é justificada se tem alguma finalidade que não seja a própria autoridade -- o gosto pela autoridade em si é a paixão da tirania. Porém, se uma autoridade tem uma finalidade, uma vez que essa finalidade é atingida, não existem mais razões para que ela seja seguida. Não faz sentido que o papel de uma autoridade intelectual seja inserir nos estudantes algum pacote de "formação" em qualquer um dos sentidos mais comuns, pelas razões já mencionadas e ainda outras. O papel de um professor acadêmico é oferecer um instrumental básico para que seus estudantes possam participar do meio acadêmico. Uma vez que isso foi alcançado, mestre e discípulo deveriam desfazer essa relação e começar outra próxima da igualdade. Se o abismo imaginário entre cada posição de autoridade intelectual fosse menor, isso apenas favoreceria o avanço das pesquisas e discussões acadêmicas. As teses mais elevadas naturalmente se destacariam e se refinariam pelo debate honesto, e os indivíduos merecedores de destaque o receberiam por um processo respeitável e livre de repressões desnecessárias. Entretanto, o desejo pela autoridade em si é patente entre os universitários, em especial entre doutores. É sintomático o quanto professores doutores mantém suas relações de autoridade com seus orientadores de doutorado mesmo após ocuparem a mesma posição. A autoridade não é tomada nesse meio como algo que deve cumprir uma função e se desfazer antes de se tornar perniciosa, mas como uma recompensa que todo o universo deve ao indivíduo por ter suportado sem questionamentos a autoridade sem função de seus "mestres". A função de um mestre é instruir. Se um mestre não pode mais instruir um indivíduo -- seja porque o sujeito já está preparado para instruir a si mesmo ou porque encontrou outros caminhos -- a relação de autoridade entre os dois deve ser desfeita, deve se reverter ao seu estado mais simples, no qual ambos indivíduos são apenas dois seres humanos. É muito comum que se fale em "humildade" e em "gratidão" em uma tentativa de se justificar a posição desses tiranos decadentes que infestam nossas instituições. Mas não existe humildade nenhuma no rastejar de um verme que simplesmente aguarda o dia no qual poderá ser um parasita como seus repressores, e é precisamente ingratidão que o legado dos grandes mestres do passado seja desperdiçado porque somos incapazes de seguir o exemplo daqueles que tiveram coragem diante da incerteza.

Em comparação, como é mais leve o ambiente de estudo e de discussão sem essas compulsões! Quem estuda por conta própria, nunca vai mandar em ninguém através de seu repertório, mas também não terá que obedecer as orientações egocêntricas de ninguém ao longo de seu caminho de sabedoria. A autoridade é um grande peso, e de tão trabalhosa manutenção quanto a reputação no meio universitário. O sujeito formado e adornado como autoridade intelectual não evita ceder em uma discussão apenas por arrogância, mas também porque seu papel fundamentalmente ilusório e imaginário precisa desse tipo de manutenção. A autoridade intelectual permanente não se baseia em nada, nem em uma função, nem em uma qualidade exclusiva do indivíduo, o que impede que o indivíduo seja autêntico enquanto faz esse papel. Quem não se coloca como uma autoridade intelectual reserva para si o direito de errar, de admitir que seus argumentos foram superados, de confessar ignorância em qualquer assunto, de fazer experimentos que quase certamente serão fracassados. Toda energia gasta com as ficções compulsórias que mantém os doutores como semideuses acima de nós e os clássicos como deuses acima dos doutores -- todo esse tempo e esse esforço podem ser gastos com quaisquer outras atrações da vida, incluindo uma busca sincera pela verdade. Em vez de ser condicionado pela castração acadêmica, o sujeito livre desse tipo de autoridade pode encontrar suas referências e motivações na interação com outros indivíduos iguais, ou com os problemas de seu tempo, etc. A não ser que um indivíduo seja incapaz de se motivar sem figuras de autoridade, as desvantagens do estudo livre em relação ao universitário são estritamente pragmáticas. O acesso a recursos como livros caros, traduções recentes e periódicos acadêmicos é bastante limitado fora das universidades. A atenção que um acadêmico renomado recebe é útil em todos os âmbitos imagináveis (e até poderia ser intelectualmente mais útil), enquanto um sujeito independente ou aposta em um público extemporâneo, ou abandona a ideia de ser reconhecido. As universidades aglomeram indivíduos interessados no conhecimento (embora isso muitas vezes ocorra na forma de uma armadilha), enquanto fora do meio acadêmico o encontro entre dois interessados em discussões e estudos é consideravelmente mais raro. Um salário de doutor abre muitas portas, também. Mas mesmo quando tratamos dessas vantagens, elas podem ser substituídas por outras formas de interação, trabalho e divulgação possibilitadas pela internet. A carreira acadêmica certamente não é tão atrativa quanto sua propaganda sugere, e justamente pela omissão dos problemas mencionados, além de outros, se perpetua algo como uma muralha entre os universitários e a comunidade externa. Dentro da acadêmia a mera discussão dessas questões costuma ser tomada como um desrespeito aos doutores presentes... Se estabelece assim um espírito de "nos adore ou nos deixe" -- e a grande maioria da população faz a segunda opção, com toda a razão.

Mesmo sem a existência de todos esses aspectos políticos e culturais que interferem nos estudos associados a alguma instituição universitária, os próprios conteúdos estudados, simplesmente por preencherem a memória, causam limitações quase tanto quanto abrem possibilidades. Nem todo viés é sensível à verificação empírica, mesmo se for o viés de um indivíduo que busca firmemente o ideal de honestidade intelectual. Por exemplo, o conceito de dialética de Hegel é perfeitamente imune a qualquer tipo de falsificação empírica ou contra argumento lógico. Se um indivíduo estuda obras de Hegel e adota a mentalidade de que a história é dialética, surge nisso um viés que poderia perfeitamente ser de outra forma, mas que provavelmente irá persistir por muito tempo até começar a mudar, minimamente. Mesmo se o sujeito estiver determinado a negar as proposições do autor, estará ainda negando especificamente aquelas proposições, daquele autor. Em outras palavras, o indivíduo é influenciado pelo contato com as ideias alheias independentemente de ter ou não "pensamento crítico". Essa influência tende a condicionar também os estudos futuros, seja por atração ou em reação aos conteúdos absorvidos. Isso geralmente resulta em um sujeito que ou tem firmes convicções em ideias alheias, ou não sabe ter convicções, um sujeito que depende da formulação metafísica alheia. Quanto mais pessoal, mais autêntica for a visão de mundo de um sujeito, maior será sua atenção para os problemas, possibilidades e pessoas ao seu redor e em seu tempo. Ao contrário, aqueles que se deixam absorver nos grandes sistemas metafísicos de outros indivíduos aos poucos se tornam incapazes de considerar discussões incompatíveis com tais sistemas. Quando um sujeito se mantém na sua própria metafísica, seu improviso pode acompanhar os fatos ao seu redor. Se o sujeito depende de uma metafísica alheia, essa adaptação é quase impossível, porque depende antes da compreensão da mentalidade de outro indivíduo através de suas palavras em livros e entrevistas. Entre um especialista ou adepto fanático da obra de um autor e a realidade ao seu redor não existe um abismo, mas dois. Os pensamentos alheios fortalecem a inteligência de um sujeito na medida em que combinam com suas inclinações intelectuais mais simples e espontâneas -- com seus axiomas. O esforço em torno de uma instrução "objetiva" faz sentido apenas na perspectiva da ciência, e mesmo nesse campo existem muitas dificuldades com o conceito de objetividade. A busca pela objetividade na forma da absorção, mesmo a contra gosto, de sistemas, teorias e preocupações de autores "relevantes" é um exercício consciente contra a autenticidade. As referências "essenciais" são um conjunto muito mais pessoal do que a maioria dos estudiosos gostaria de admitir -- justamente porque querem parecer sábios além de estudados, porque sustentam que suas leituras resolveram algo. Também por isso tratam aqueles que não possuem as mesmas referências como se fossem pobres de espírito.       

A simples carga de leitura cria, conforme aumenta, uma tendência à arrogância, mesmo sem o incentivo das instituições de ensino. O tempo gasto com aquelas interações não é gasto em debates, ou na observação dos fatos atuais, ou em reflexões existenciais íntimas, etc. A dinâmica dos livros é cem vezes mais lenta que a de uma conversa qualquer, e não contém nenhuma troca de afetos. Autores que comunicam suas ideias e interagem com outras principalmente por essa via se acostumam com raciocínios extremamente longos entre uma resposta e outra. Quando esse hábito se transfere para a vida social, temos o tipo de indivíduo que não consegue explicar nada em menos de quinze minutos ou com menos de dez citações (os eventos acadêmicos são coleções desses tipos). O hábito com o "debate" através do estudo e da escrita de obras inteiras  em reação a outras naturaliza a prática do monólogo com ouvintes, que predomina hoje nas universidades repletas de tipos que se pretendem libertários, abertos, democráticos, etc. Quando se focaliza tanto a própria vida intelectual, quando os únicos momentos filosóficos do indivíduo ocorrem diante de um livro ou de um monólogo de especialista, é natural que o restante da vida do sujeito seja isento de espírito. Todos nós temos diversos anseios de diversos tipos. Se acreditamos que um anseio está completamente satisfeito por uma determinada carga horária, não nos preocupamos com isso em outras esferas. Assim surge o tipo de erudito comentado por Nietzsche, o erudito sem espírito, que conhece um grande número das maiores obras da humanidade mas se comporta socialmente como um perfeito imbecil, se cercando de opiniões e hábitos vulgares mesmo diante do senso comum. Ao contrário, o sujeito que não focaliza tanto seu esforço intelectual tende a espiritualizar mais esferas da vida, buscando conversas filosóficas com amigos, filmes com alguma profundidade, hábitos que façam sentido diante de seus valores próprios, etc. Nada justifica a separação que os especialistas e a obsessão criam entre a instrução e o prazer, entre o estímulo intelectual e a diversão. A frieza, seja no discurso ou na escrita, pode ser perdoada em favor do conteúdo, mas não é nenhuma virtude. Se existem indivíduos que sabem discursar de forma profunda e ao mesmo tempo clara, jovial e aberta enquanto outros levantam reflexões relativamente interessantes mas de forma obscura, pedante e reclusa, o segundo tipo é simplesmente obsoleto. É claro que, para quem não sabe pensar por responsabilidade própria e não tem nada a oferecer além de suas citações, as obras e figuras mais obscuras e fechadas são justamente as mais atrativas, por exigirem dedicação infinita e sem propósito.

Se isso fosse possível, o ideal seria que um indivíduo nunca colocasse em sua mente nenhuma referência que lhe fosse inútil, nada que pudesse condicionar suas reflexões de uma forma esterilizante, por quaisquer um dos fatores discutidos anteriormente. Como a busca pelo desconhecido e por novas possibilidades não permite tal segurança, é importante que se tenha ao menos autenticidade nas próprias desventuras. A adesão irrefletida a um plano de "formação", formulado também de forma automática, não chega sequer a ser um pacto onde se vende a alma por algum benefício. Se trata realmente de uma falta de lucidez e coragem pela qual muito potencial é desperdiçado, para o benefício de ninguém. Pascal foi muito preciso ao afirmar a importância da questão acerca do destino de nossas almas após a morte -- apenas um ser com uma sensibilidade extremamente amortecida poderia se tornar indiferente ao seu destino eterno. De forma semelhante, um ser que guarda para si alguma dignidade não pode simplesmente lançar ao acaso a seguinte questão: "O que eu faço resultará em algo de valor para alguém?". O "certamente sim!" que ressoa ao redor da interminável pilha de trabalhos de função equivalente no meio universitário é um otimismo decadente. Entra na mesma categoria a postura do público que se diverte em uma ou outra ocasião com a fala de alguma figura intelectual renomada na mídia, mas que não leva suas ideias para além disso. Se trata do tipo de otimismo que nega os problemas em favor de um benefício psicológico a curto prazo, possibilitando que processos perigosos e reversíveis se agravem ainda mais, até que uma soma de problemas exploda em alguma tragédia. A letargia filosófica que infecta nosso século não é nada a se subestimar. Com as diversas tensões políticas nacionais e internacionais aumentando enquanto a capacidade de expressão autêntica se reduz nos indivíduos, o que impede a humanidade de repetir por simples inércia alguns dos padrões destrutivos do passado? Nossa impotência diante do provável resultado catastrófico dos erros da humanidade não é responsabilidade de nenhum autor clássico, de nenhuma crise econômica nem de nenhum presidente americano. Você, e apenas você, é responsabilizável pelos seus triunfos e limitações. Os únicos estudos valiosos são aqueles que esclarecem e reforçam essa consciência da liberdade.

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Notas: 

*1: "Existem também obras omitidas por esse direcionamento"

Por exemplo, as grandes obras filosóficas do oriente são ou ignoradas ou abordadas apenas como uma curiosidade na academia simplesmente porque o viés eurocêntrico é transmitido de geração a geração através dos diversos processos comentados no texto. Aliás, eu diria que o eurocentrismo na filosofia em particular não é sequer justo com a Europa, e ainda sequer justo com a Grécia Antiga... Muitas referências se perdem porque sustentamos a soberba dos doutores que acreditam que estudam isto e não aquilo porque isto é algo universalmente importante e aquilo é irrelevante. 

*2: "Mesmo o mais aparentemente simplório indivíduo irá revelar muito sob uma boa dose de maiêutica"

É evidente que em uma cultura de citadores um indivíduo com pouca formação vai parecer superficial com suas opiniões. Entretanto, quando se tem a paciência para ouvir, entender e questionar a partir disso, sem a imposição ao indivíduo de pressupostos estranhos às suas reflexões, muitas vezes o discurso inicial se refina com facilidade e chega em reflexões profundas. Mas um sujeito "formado" tende a ser incompetente tanto no diálogo aberto quanto nessa arte fundamental da filosofia, e geralmente não sabe como mostrar os limites na opinião alheia de forma construtiva. Assim, o sujeito "culto" finge que concorda, se cala ou intervém de forma pedante -- mostrando toda sua sabedoria de academia e refinamento espiritual livresco.    

*3: "Uma posição de autoridade é justificada se tem alguma finalidade que não seja a própria autoridade"

Vale acrescentar que a autoridade também pode ser justificada pela presença de uma qualidade singular ou de extremo valor no indivíduo, além de sua utilidade no cargo em questão. Como foi explicado, as autoridades acadêmicas atuais raramente tem alguma qualidade desse tipo, e suas dinâmicas são ajustadas para que a verificação pelo debate aberto de fato nunca aconteça. Para além da justificação de um cargo, a autoridade intelectual é um sinal das piores tendências tanto de obsessão quanto de covardia na sociedade, um sinal de que a democracia não se realiza também por questões psicológicas, além das políticas.


sábado, 14 de janeiro de 2017

Política Além de Esquerda e Direita

É comum que manifestações e demandas políticas relevantes sejam agrupadas em categorias amplas, que fazem com que indivíduos com ideais semelhantes se encontrem e reconheçam outros movimentos facilmente. Entre tais categorias, "a direita" e "a esquerda" são quase sempre presentes nos debates políticos. A separação entre a direita e a esquerda não é livre de contradições nem diz respeito a objetos simples, mas costuma ser apresentada como se fosse assim, muitas vezes com cada uma das partes apresentando um desprezo profundo e inegociável pela contraparte. Nas disputas polarizadas que constituem hoje o caso normal na política democrática, fica evidente que a distinção entre a esquerda e a direita atingiu um nível mais profundo que a separação teórica entre tipos de demandas políticas. As tempestades de ódio e acusações absolutas entre os lados chegam e passam, enquanto a estrutura política e econômica da sociedade permanece no processo de entropia que preocupa ambas as partes. A polarização política, o impulso recíproco de proferir ataques à oposição é a motivação mais forte e notável para o apoio de cada lado a um respectivo partido. Não se pode dizer que Dilma pretendia fazer a revolução, nem se pode dizer que Temer pretende liberar o mercado da intervenção do estado. Não se pode dizer que Hilary e Trump tinham propostas radicalmente diferentes, mas a oposição entre aqueles que apoiam cada uma dessas lideranças ocorre como se um lado fosse a realização do socialismo, e o outro a aplicação do neoliberalismo. Diante do contraste entre tais certezas irracionais e o efeito dessas posições sobre a sociedade fica evidente que as questões entre a direita e a esquerda não contemplam exclusivamente assuntos políticos, mas também questões de identidade -- quando não apenas questões de identidade. Se tomada como algo mais que um modelo que representa vagamente a complexidade da política e dos indivíduos, como algo mais que um recurso heurístico, a separação da política entre esquerda e direita logo nos desvia das questões realmente públicas para um âmbito de questões individuais apresentadas em linguagem política -- uma disputa na qual as razões, a sociedade e o debate público não são o que realmente está em questão, mas apenas o pretexto para a afirmação de algumas identidades através da negação de outras, uma disputa com mais afetos que objetos.

É falso afirmar que a esquerda e a direita existem como objetos, como grupos políticos definidos e claramente responsáveis por alguma série de fenômenos do mundo. Se os professores de uma universidade entram em greve por alguma demanda, podemos afirmar que existe o grupo dos professores em greve da universidade x, e é perfeitamente viável analisarmos os fenômenos associados a tal grupo. Se tratamos do feminismo, estamos tratando de uma complexidade enorme de trabalhos e iniciativas com várias discordâncias internas entre diversas partes, mas podemos falar razoavelmente sobre o feminismo como algo que, se não for definível, é pelo menos identificável -- embora nesse nível não possamos mais atribuir fenômenos a esse objeto com facilidade. Quando tratamos da esquerda e da direita, tratamos de algo ainda mais amplo que o feminismo, porque no caso do feminismo ainda pode ser dito, na formulação mais genérica possível, que feministas combatem a opressão às mulheres. Mas qual formulação, mesmo se genérica, poderia definir a esquerda ou a direita? Não existem problemas da direita ou da esquerda como existem questões feministas ou os problemas dos professores da universidade x. A divisão entre os assuntos da esquerda e os da direita sempre se mostra repleta de contradições e exceções que trivializam ambas as definições. O que constitui uma postura de esquerda ou uma de direita? O apoio à autoridade do estado? A defesa da igualdade social? O apego aos valores tradicionais? Ambos os lados mostram todas essas características. A legalização de certas drogas é tipicamente recebida como uma demanda de esquerda, mas existem também muitos liberais que, para que o mercado seja liberado da intervenção profunda do estado, defendem que as drogas devem ser legalizadas, bem como o aborto e a prostituição. A defesa da legalização do aborto como um serviço que apenas o indivíduo pode requisitar ou evitar coincide com a causa feminista de afirmar que a mulher tem o direito absoluto sobre o seu próprio corpo, e vai contra a demanda cristã de que todo feto seja considerado um indivíduo com alma. O conteúdo filosófico do cristianismo, que é geralmente associado a movimentos conservadores (no sentido moral e também no político) , é facilmente compatível com os ideais socialistas e em vários pontos é incompatível com o incentivo capitalista da concorrência e do lucro (o cobrador de impostos é o vilão em diversas passagens bíblicas). Liberais frequentemente se colocam contra o estado paternalista, a favor da ideia de um estado mínimo, no qual o indivíduo pode comprar armas para se defender, estabelecer seus próprios contratos e buscar a educação que lhe convém. Isso é muito distante do status quo, mas tais ideias são tratadas como conservadoras, embora efetivamente não estejam conservando praticamente nada da ordem vigente. Socialistas costumam ser bem mais conservadores em relação ao alcance do estado. As propostas anarquistas foram historicamente ridicularizadas e até perseguidas entre os socialistas em diversos momentos fundamentais. É comum que socialistas fiquem presos na exegese escolástica dos textos de Marx como se necessariamente o autor canônico tivesse que ser a fonte da verdade, enquanto é mais comum entre os liberais o estudo sem apego irrefletido de diversas fontes e o elogio da inovação e da postura de concorrência também no plano intelectual. O indivíduo criativo é melhor considerado pelos "conservadores" que pelos "progressistas". Pense por um momento na complexidade e nas contradições da história e dos agentes políticos -- o uso dessas categorias é uma escolha narrativa.

Não existem questões, intenções ou opiniões que sejam intrinsecamente de esquerda ou de direita, o que significa que ações também não podem ter nem uma essência nem outra. A esquerda e a direita são mitos, conceitos usados para construirmos nossas narrativas que não dependem tanto do estado das coisas quanto dependem de nossos desejos e traumas. Pessoas se incomodam com o status quo quando suas ambições individuais são impossibilitadas pela coerção ou incompetência de outros agentes sociais, quando segundo seus valores a sociedade fere a dignidade de alguns indivíduos, quando os valores cristalizados na estrutura formal da sociedade não correspondem mais com os valores mais vívidos na população, etc. Os argumentos e os conceitos que justificam uma mobilização surgem muito depois do incômodo que de fato a motiva, como uma forma de esclarecimento e comunicação daquilo que está acontecendo não apenas na razão. mas também nos afetos. A compreensão da política sob a divisão entre a esquerda e a direita tem realmente duas funções na maioria dos casos, que são duas faces do mesmo processo: A primeira é simplificar o volume de informações diversas e contraditórias ao qual uma pessoa se expõe durante alguns minutos de discussões políticas, a segunda é motivar mais profundamente a mobilização política em torno de determinadas insatisfações. Acontece que, posto que a origem das demandas políticas não é estritamente racional, os meios para alcançar tais demandas raramente são racionais para além da superfície. Disputas políticas geralmente envolvem choques entre vontades de diversos agentes e grupos distintos, e os meios empregados sob tal confusão violenta frequentemente são dúbios de um ponto de vista moral. Não é raro que alguém que luta contra a opressão acabe justamente oprimindo alguém como um meio para atingir sua causa. Um indivíduo que decide usar demais a razão e se manter fiel a seus princípios morais durante sua atuação política quase certamente vai discordar de membros de seu próprio grupo ou movimento, e vai ainda concordar com a oposição em diversos pontos. Nessa situação, a intensidade afetiva de sua mobilização diminui, porque o indivíduo começa a questionar se sua causa nobre é realmente tão pura sendo que existe uma oposição que também tem uma causa nobre, e com tais questionamentos sua disposição para atacar membros da oposição ou para participar das trapaças empregadas por seus colegas desaparece. A razão não é capaz de fazer com que afetos se criem ou se dissipem, mas é capaz de fixar, ampliar ou reprimir o conteúdo irracional na consciência. Sem a certeza de que a oposição merece ser odiada e menosprezada, a certeza de que seu próprio lado na disputa merece adesão total também se perde, e o indivíduo fica propenso a se incomodar com as posturas de companheiros e opositores igualmente. A frente da atuação política costuma repelir aqueles que realmente buscam a verdade e a moralidade, favorecendo as simplificações e as verdades parciais.  

Por outro lado, tais conflitos internos não afligem o indivíduo que simplifica os fenômenos e agentes políticos com suas categorias. Tache uma pessoa de "esquerdista", "coxinha", "reacionário" e você não terá qualquer dificuldade em ignorá-la, desprezá-la, atacá-la. O indivíduo rotulado não é mais um ser humano passível de empatia para o intérprete que aplica a categoria, mas apenas um objeto indesejado colocado no caminho para sua justa causa. A certeza reforça a motivação e sua profundidade determina o quão longe um indivíduo está disposto a chegar por uma causa. Por isso mobilizações políticas tipicamente fazem uso de simplificações como uma forma de incitar o combate à oposição através dos meios necessários. Quando as coisas chegam a um ponto no qual ninguém mais sabe realmente o que quer da política, no qual os embates com outros agentes geraram outros traumas e demandas que soterram as motivações originais, as simplificações chegam ao ponto dos termos como "esquerdista", um grau de polarização e simplificação perigosamente próximo daquele promovido pelos regimes fascistas. Entendo que provavelmente é inevitável que tais ferramentas e simplificações existam na política. Não é a princípio um problema que a política não siga a rigor o caminho da moralidade (inclusive porque muitas vezes mudar a moral vigente é a demanda), e não é necessário que todo manifesto político seja uma belíssima obra filosófica. Isso porque a atuação política é, em grande parte, um teatro, uma exibição que precisa ser intensa para alcançar o resultado esperado. Nenhuma demanda política é alcançada por meios "politicamente corretos"*¹. A organização vigente precisa ser desorganizada a contragosto dos atuais encarregados para que outra possa surgir, e para que um movimento seja capaz disso se faz necessária uma propaganda, que não chega longe se for intelectualmente refinada. O que provoca problemas é o fato de que muitos indivíduos não sabem que estão usando de truques e sofismas na atuação política. Muitos indivíduos não cultivam suas capacidades intelectuais e sensíveis para além do estado bruto que se apresenta na política. Um indivíduo pode usar as ferramentas usuais na política estando consciente desse processo. Por exemplo, uma feminista pode dizer "todo homem é um estuprador em potencial" como um discurso chocante, destinado a coagir as autoridades de alguma instituição pública para que a implementação de mais medidas de segurança contra o estupro seja encaminhada, sem nunca tratar a nível pessoal um homem como um estuprador em potencial. Isso porque o papel daquela afirmação é ameaçar e desmoralizar a resistência da oposição e motivar a insistência cada vez mais intensa daqueles que sustentam a demanda. A afirmação em questão não tem a função de dizer a verdade, de explicar como o mundo funciona ou mesmo de expressar aquilo que a pessoa sente. Igualmente, um indivíduo pode agir em uma ocasião se colocando como um conservador, ou como um revolucionário, qualquer performance necessária para transmitir uma mensagem e atingir um resultado sem precisar carregar aquele papel para outras esferas nas quais tal postura não é pertinente.

Entretanto, é incomum que a relação entre identidade e política seja entendida dessa forma. Em geral, pessoas acabam transformando afirmações políticas estratégicas em verdades e discursos de identidade, que frequentemente resultam em discursos de ódio. Por exemplo, durante as tensões em torno do impeachment da presidente Dilma, diversos exemplos de amizades sendo desfeitas e relações familiares sendo deterioradas entre pessoas de lados opostos foram observados, acredito, por todos que acompanharam a situação nas redes sociais. Isso aconteceu porque o embate entre esquerda e direita certamente não foi tomado naqueles tempos como uma espécie de performance, na qual ambos os lados dependem da existência da oposição como condição de existência própria. Se a oposição tivesse sido entendida assim, não teria sido levada para fora daqueles assuntos políticos e ninguém seria tachado em outros âmbitos de "coxinha" ou "esquerdista". Termos como esses sequer existiriam em posições políticas. Em vez disso, a oposição foi tratada como uma questão identitária, como é de costume. A formação filosófica da maioria dos principais agentes políticos de hoje é extremamente pobre, às vezes inexistente. Não me refiro à formação filosófica no sentido formal ou acadêmico, mas sim ao sentido mais natural de filosofia, dos indivíduos serem minimamente habituados para a percepção da natureza, origem e sentido de ideias ou discursos e buscarem o refinamento de seus pensamentos mais que o acúmulo de informações particulares. Por causa dessa falta, a maioria dos agentes políticos trabalha ignorando distinções conceituais importantes e confundindo teorias com fatos, interpretações com dados, etc. Isso transforma a simplificação do discurso que é comum na política em uma simplificação do pensamento que permeia outros planos, porque o indivíduo não sabe como exigir mais de seus pensamentos e dos discursos alheios quanto é adequado (e.g em uma aula ou em uma conversa entre amigos). Outro fator bastante influente é a compulsão narcísica que se intensifica cada vez mais em nossas dinâmicas políticas e afetivas. Nossas dinâmicas sociais se apoiam demais no culto e no repúdio a determinadas figuras, e é comum que pessoas tenham como meta a "autodescoberta", no sentido da definição de uma identidade em vez do "conhece-te a ti mesmo", no sentido de uma lucidez filosófica e espiritual. Assim, além da falta de habilidades intelectuais básicas que levariam qualquer indivíduo a perceber o absurdo de certas posturas intelectuais diante dos temas políticos, existe um impulso narcísico*² que faz com que pessoas queiram, até a nível afetivo, rótulos como "conservador" ou "revolucionário". Tudo isso  afunda ambos os lados da disputa binária cada vez mais profundamente na estupidez e na má-fé.

Nas discussões que se colocam como de alto nível, a situação geral tende a ser a mesma. É muito comum que o termo "neoliberal" seja usado, mesmo entre acadêmicos dos quais se esperaria maiores conhecimentos, como uma espécie de insulto que desqualifica alguma postura ou ideia automaticamente (como ocorre com o termo "positivista"). Assim como nas discussões comuns pessoas se agarram às suas categorias como se isso fosse resolver suas contradições e compulsões internas, acadêmicos muitas vezes trabalham na forma de um exercício de categorização das ideias como se isso resolvesse as severas dificuldades éticas e epistemológicas que se apresentam àqueles que decidem definir o que é um trabalho "sério", "profissional", "rigoroso", "científico", etc. Incontáveis artigos acadêmicos exploram assuntos como "Camus era ou não existencialista? " ou "Popper era positivista?". Usando desses temas extremamente específicos e que praticamente ignoram a atualidade, especialistas encontram assuntos que são alheios ao público em geral e justificam assim uma posição de autoridade intelectual, afirmando que conhecem algo refinado e de difícil acesso, quando realmente esses assuntos costumam ser apenas particulares e nebulosos (por serem disputas em torno de interpretações obras, não de proposições sobre o mundo) demais para serem relevantes para o público. No meio acadêmico, uma máscara é o suficiente. Nosso "meio intelectual' gira em torno do culto e do repúdio a certas figuras tanto quanto a política no "senso comum", isso tanto em relação aos autores canônicos quanto em relação aos professores mais procurados para palestras, entrevistas, etc. Circula impune uma ideia corrupta de humildade intelectual, que consiste realmente em se delegar o esforço que meditar, discursar e dissertar envolve a certas figuras que são consideradas autoridades. Isso impede que o público maior perceba o quanto nossos supostos intelectuais abusam de vícios de linguagem e simplificações do tipo "bem versus mal" tanto quanto qualquer indivíduo "comum". A tentativa de se desqualificar algo com o termo "neoliberal"  mostra preguiça no discurso e superficialidade no pensamento, dada toda a complexidade da tradição liberal e a diversidade das teses dos autores que não são nenhum grupo uniforme (ou mesmo definido, realmente). Apesar de não ser muito difícil para qualquer um perceber tais insuficiências nas posições de certos (supostos) filósofos, o valor da humildade em sua forma corrompida pelo medo e pela preguiça faz com que os seguidores dessas figuras simplesmente copiem o exemplo e naturalizem cada vez mais esses vícios, sentindo-se orgulhosos desse estado de menoridade intelectual e detestando de imediato qualquer um que sugere que a originalidade é tão importante quanto a diligência. Mesmo no campo da atuação política, no qual a simplicidade das ideias é em grande medida conveniente, reações violentas imediatas à identificação de alguém com a esquerda ou com a direita são bastante perigosas e geralmente um estorvo. Em discussões que se pretendem intelectuais, é uma questão de princípio que a exigência com as ideias seja muito maior (acadêmicos frequentemente confundem isto com a exigência de formalismos). É bastante vergonhoso testemunhar um indivíduo com doutorado e que exige toda a "humildade" das "pessoas comuns" tachando isto e aquilo de neoliberal como um recurso retórico, como se essa espécie de discurso fosse suficiente para tratar quaisquer processos. O meio acadêmico atualmente é praticamente mantido por compulsões narcísicas, e pela mistificação dos títulos acadêmicos, que garantem bem menos do que a propaganda universitária sugere. Doutores saturam a produção acadêmica com mais e mais artigos de comentários sobre comentários como se estivessem contribuindo com a situação intelectual do Brasil (até do mundo, na mente de alguns). Isso torna quase impossível que alguém que não tem doutorado explique para um professor doutor que o sujeito não está fazendo o papel que pensa estar valorosamente praticando a anos -- e entre doutores tais críticas muito raramente surgem porque se forma ali um interesse pela própria classe, bem merecedora da ironia do termo "elite doutoral". Enquanto uns passam a vida saturando a produção acadêmica com apresentações formais das mesmas coisas em nada superiores ao "senso comum", aqueles que aparecem com frequência para o público em geral (os "formadores de opinião") geralmente produzem textos e discursos que entretém indivíduos de direita ou de esquerda reforçando suas certezas tolas e seus vícios de linguagem.  

A filosofia não é uma disciplina formal que requer as práticas e convenções acadêmicas atuais para existir, mas é essencialmente uma qualidade humana que, embora não seja tão imediatamente importante quanto outras habilidades mais simples, é fundamental para muitas questões mais refinadas que a mera sobrevivência, é um dos fatores que definem se somos algo mais que uma série de reações químicas. A habilidade filosófica simplesmente não tem sido exercitada e demonstrada o bastante, seja fora ou dentro do meio acadêmico, e o estado lamentável da política é apenas uma entre as diversas consequências disso. A ideia de que a filosofia é inútil não é responsabilidade da população em geral, mas precisamente dos especialistas que tentam repor a ideia da filosofia como um pensar casual, distraído e sem propósito com a ideia da filosofia como o conjunto dos formalismos e idiossincrasias da academia. A alternativa oferecida não colabora para que o preconceito comum em relação à filosofia seja rompido porque se trata também de um velho e cada vez mais obstinado preconceito, uma postura que ignora justamente o exemplo dado por figuras como Descartes, Kant e Nietzsche -- que são idolatrados nas universidades de uma forma que desagradaria imensamente qualquer um deles. Nossa sociedade está saturada de velhos hábitos intelectuais, especialmente de hábitos que parecem "humildes" com a excelência dos clássicos, mas que no fundo ignoram constantemente o exemplo, a atitude dessas figuras. A impotência das ações e discursos é diretamente relacionada com o desgaste dos conceitos, teorias e referências. Faça a seguinte observação (ou lembrança): Quantas das opiniões que você lê nas redes sociais são textos da própria pessoa que os publica, e quantas são citações de fontes que sempre são citadas por muitas pessoas? Quantos dos trabalhos acadêmicos que você lê são resumos, comparações e explicações sobre os trabalhos de outros autores mais famosos que o indivíduo que publica, e quantos são teses sobre algum tema nas quais o indivíduo que escreve fala em seu próprio nome e assume suas ideias como conhecimentos? Entendo que, operacionalmente, compartilhar um texto é mais fácil que escrever um, e que algo semelhante vale no meio universitário. Mas é bastante claro que existe também um medo que acompanha esse habito, um medo que é forçado e reforçado por supostas autoridades intelectuais e justificado por uma ideia incorreta de humildade. A capacidade para a formulação de textos autorais é pouco exercitada, enquanto o hábito de copiar e reproduzir é incentivado pelas redes sociais que lucram com isso e pelos acadêmicos que mantém suas máscaras assim.  

As grandes revoluções políticas geralmente acompanham o surgimento de revoluções filosóficas. Os discursos, conceitos e referências também se gastam com o tempo, e os conceitos precisam ser ou renovados ou recriados de tempos em tempos para serem capazes de inspirar e influenciar. Muito se perde quando o indivíduo não explora sua riqueza interior e tem medo ou incapacidade de comunicar suas ideias em suas próprias obras, porque cada indivíduo tem uma soma única de experiências, com a qual poderia chegar a obras, teorias, tecnologias e ideias que enriqueceriam a humanidade, como os clássicos fizeram antes de nós, que não o fizeram em um único e absoluto acerto, mas através de uma vida de aperfeiçoamento de erros. A coragem e a habilidade de se formular conceitos próprios é uma das razões pelas quais os clássicos foram capazes de influenciar a história com suas palavras. Aqueles que conseguem apenas citar os conceitos e formulações de outros estão sempre atrasados, sempre dependentes, sempre na menoridade intelectual. A população passiva intelectualmente (na qual consta a maioria dos acadêmicos) idolatra certas figuras esquecendo de si mesma. Louvando o trabalho de um alemão ou francês do século 17, o indivíduo se esquece de aprimorar suas próprias obras e capacidades e de apreciar aquelas de seus próximos. Um dos muitos resultados disso é que nossas discussões ficam saturadas e engessadas por termos que pessoas reproduzem automaticamente. A postura mais passiva e contemplativa tem sua importância, e um mundo no qual cada indivíduo é um Sócrates ou um Nietzsche seria tão difícil de suportar quanto o nosso é entediante. É apenas natural que a postura acadêmica seja menos original e mais formal, mais rigorosa e mais retrospectiva. Também não é um problema a princípio que mais pessoas observem e estudem e menos pessoas produzam e criem. Mas temos agora um problema de saturação, porque nossa cultura e nossas instituições não tratam adequadamente a originalidade e as propostas que desafiam ou expandem as perspectivas ortodoxas, apesar dos termos "inovação" e "crítica" serem tão frequentes enquanto propaganda.

O repertório da política precisa ser renovado de tempos em tempos, do contrário novas soluções não são desenvolvidas, novos ideais não são contemplados. Muitas pessoas pensam hoje que todas as possibilidades políticas da humanidade já foram exploradas. Um filósofo do século 17 escreveu essa mesma opinião antes do socialismo, do anarquismo e do capitalismo como conhecemos hoje. Nós mesmos ignoramos agora o comunalismo do Curdistão, uma forma política que não corresponde a nenhuma das que habitualmente discutimos. Isso porque na academia apenas os trabalhos canônicos são citados, o que faz com que "a coruja de minerva levante voo apenas ao anoitecer". Enquanto isso a população geral segue as sombras da academia, que são sombras das sombras do mundo... A política é um jogo de forças, o jogo do poder. Atuar politicamente significa querer que algo se realize, conduzir o ser na direção de um "dever ser", da imaginação de um futuro. Se nossos conceitos e hábitos intelectuais como a fixação narcísica de uma esquerda e uma direita produzem apenas um redemoinho de ódio e diversos desperdícios esporádicos de energia, manifestações violentas e de mínima duração na qual apenas a própria população é realmente derrubada, isso é um sinal de que nossos conceitos e referências já não nos oferecem muito poder. Não é realmente surpreendente que estejamos em tal situação. Os hábitos intelectuais da maioria de nós se resumem a seguir autoridades, figuras famosas que respeitamos mais que a nós mesmos. Esse estado de servidão e menoridade intelectual poderia apenas se espelhar na forma de uma impotência política. Não posso dizer com certeza que necessariamente novos termos trariam algum progresso à civilização, mas posso afirmar com convicção que nos faria bem, como indivíduos, se cultivássemos em nós um pouco mais do exemplo deixado pelos clássicos dos quais atualmente idolatramos apenas as palavras, nos faria bem um pouco menos de "humildade" e um pouco mais de coragem e esforço. O fracasso com dignidade é preferível ao fracasso por preguiça e covardia.

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Notas:

*1: Nenhuma demanda política é alcançada por meios "politicamente corretos".

Quando uma determinada ordem ou interesse de um grupo se instala na estrutura de uma instituição (ou do estado em geral), é comum que os próprios espaços onde a crítica ao status quo poderia ser feita de forma pacífica sejam modificados para que apenas discursos e ações favoráveis ao estado vigente sejam possíveis dentro da legalidade, o que torna necessária a ação ilegal ou incompatível com as atuais convenções sociais. Quando foi feita a marcha da maconha, a manifestação foi tachada pela mídia e pelas instituições públicas de "apologia ao uso de drogas ilícitas". Veja como isso é circular. Existe uma lei que proíbe a comercialização e uso da maconha, e existe outra que criminaliza o elogio do uso da maconha. Como seria possível uma manifestação de pessoas que discordam da primeira lei não infringir a segunda? Se uma pessoa vai a uma manifestação dessas, é óbvio que o indivíduo tem interesse em usar a droga e não acredita que existe algum mal nisso. Dada a natureza das manifestações políticas, fazer apologia do uso da maconha é uma propaganda necessária para qualquer movimento contra a legislação atual. Autoridades frequentemente criam situações nas quais a crítica fica suprimida ou colocada em uma posição completamente injusta, e depois cinicamente exigem uma postura cordial ou pacífica de seus opositores. Nesses casos, se fazem necessárias greves, posturas hostis, destruição de propriedade, etc. Entretanto, note que as transgressões morais utilizadas para se atingir uma causa dizem muito sobre seu valor. Uma causa que faz uso de extrema violência provavelmente não é das mais nobres.       

*2: Sobre o termo "narcisismo" 

Você conhece bem a noção psicanalítica de narcisismo? Se não, este texto talvez lhe interesse.

*3: Circula impune uma ideia corrupta de humildade intelectual

Uma pessoa humilde é aquela que trata suas limitações com honestidade, não tentando disfarça-las. Isso diz respeito ao tratamento com outras pessoas no sentido de que alguém que é honesto em relação às próprias limitações dificilmente julga com prepotência outros indivíduos, afinal a pessoa humilde percebe no outro qualidades que não percebe em si mesma. Entretanto, a pessoa que toma suas limitações como absolutas não é humilde tanto quanto é derrotista e preguiçosa. Não existem bons motivos para que qualquer indivíduo pare de tentar aprender, pare de tentar melhorar suas habilidades, refinar suas obras, tornar-se mais sensível, etc. Ser humilde significa admitir seu lugar no processo de aprendizado, não parar esse aprendizado e louvar eternamente quem parece estar mais à frente. Ser humilde não significa pensar pouco, não significa aceitar ordens e informações sem pensamento crítico. Ser humilde não significa ser intencionalmente idiota. E ser humilde também não significa subestimar seu lugar para agradar pessoas pomposas e arrogantes. Exigir humildade de alguém é arrogância, é impor ao indivíduo limites que não seus, é um julgamento tolo e uma ofensa. Pessoas frequentemente encontram motivos, quando são autoridades, para impor suas próprias trajetórias sobre outros. Doutores que foram subservientes com seus professores impõe uma postura acrítica a seus alunos. Pessoas de mais idade muitas vezes cometem o deslize de usar o tempo como argumento "na minha idade você verá" ignorando que o tempo e a experiência por si mesmos não ensinam, que muitos permanecem aos cinquenta anos com a mesma cabeça dos quinze. Aceitar de antemão as palavras de um doutor, filósofo clássico ou autoridade qualquer simplesmente pelo título de autoridade não é humildade, é superstição. Todo ser humano é passível de errar e exercita isso com frequência. Um suposto intelectual que finge que seu título de especialização o isenta da necessidade de argumentar, prestar contas e ser corrigido quando for devido é simplesmente uma farsa. Permitir que tal postura passe impune não humildade em sentido nenhum.