O Conceito de Narcisismo

Conceitos como "narcisismo" e "complexo de édipo" não se referem a doenças com causas fisiológicas manifestas, e nem mesmo a transtornos sobre os quais se pode ter algum consenso fatual permanente. Esses conceitos partem de interpretações de mitos por uma boa razão : eles mesmos são mitos. O narcisismo não é um conceito empírico, em nenhum sentido. Assim como os mitos antigos que inspiram conceitos como esse são, acima de tudo, avisos formulados em uma forma narrativa, frequentemente mais capaz de alterar ou construir visões de mundo que a crítica formalizada, os conceitos como " narcisismo " são mitos destinados a expor processos subjetivos e sociais que não podem ser explicados dentro de uma área ou disciplina em particular, e tanto menos com as distinções usuais entre sujeito e objeto, universal e particular, etc. A interpretação popular de que o narcisismo é como um estado permanente de arrogância e culto da própria personalidade desperdiça a riqueza de um conceito que exprime algumas das mais importantes lições sobre as relações humanas deixadas pela cultura grega.

Um mito não é uma mentira ou um devaneio inútil, um mito é uma construção deliberada, algo que fala da realidade a influenciando. A identidade, o conjunto das palavras e imagens que usamos para definir a subjetividade desta ou daquela forma, é claramente um mito. Ouça um indivíduo narrando " quem eu realmente sou ", note as contradições, as omissões, o sofrimento e a violência que fazem a higiene da memória, veja todo o esforço que alguém precisa fazer para se definir de forma coerente, veja todos os desejos que alguém precisa suprimir para assumir um personagem específico na vida. Admitir que a identidade é um mito não significa afirmar que ela deve ser evitada, que a subjetividade é uma ilusão (no sentido de algo irrelevante)*². O reconhecimento da arbitrariedade liberta e possibilita a reconstrução do poder. Quando a identidade deixa de ser objeto de um sistema determinista de crenças o indivíduo pode purificar em si e no outro os fantasmas que devoram a sociedade. Quando um mito é tomado como objeto de obsessão e disputa, a realidade se torna um fantasma, o discurso e a ação são separados por um abismo.

Você provavelmente ouviu a história infantil sobre o homem incrivelmente belo que se apaixonou por si mesmo e morreu afogado em uma lagoa, um mito com a lição moral da humildade, tão apreciada em nossa cultura cristã. Mas o Narciso do mito que pode salvar sua alma não morreu afogado em um lago porque caiu vendo sua bela imagem, Narciso morreu após uma longa e irrelevante vida, sonhando acordado dia após dia com o quão belo (no sentido mais amplo, moral) ele poderia ser, devaneios sem nenhuma materialidade, ilusórios como sua imagem em um lago. Narciso não amava apenas a si mesmo, ele não sabia amar, porque o amor depende de outras pessoas e, portanto, de algo mais que apenas fantasias. Ele não rejeitou a ninfa Eco ao vê-la por ter se achado muito mais belo que ela. Enquanto Eco se escondia, enquanto ela era apenas uma presença e uma voz, Narciso a desejava. Ele a rejeitou no momento em que ela se revelou, porque nesse momento ela se tornou uma pessoa, um ser no mundo de realidade concreta, com características e comportamentos de origem distinta das fantasias de Narciso. Sua obsessão por descobrir sua identidade o esvaziou afetivamente. O " eu " de Narciso não era dependente dos outros ao seu redor, ou de ações, ou de poder, ou de virtude, era um " eu " dependente apenas de palavras e fantasias, um " eu " com um caminho de descoberta orientado no sentido oposto ao " conhece-te a ti mesmo " que possibilita o amor e a política.

Nós não vivemos em mundos separados e não existe tal coisa como uma individualidade absolutamente separada das demais. Por consequência, a auto-descoberta que ignora os outros e o mundo estabelece com eles relações negligentes, que frequentemente estouram em violência e ódio. O narcisismo é precisamente a compulsão pela afirmação da identidade, um complexo que faz de " buscar ou assegurar a identidade " a resposta para todos os incômodos e sofrimentos. Tendo prazer com a identidade por si mesma, um indivíduo vive absorvido em suas fantasias que usam os outros e o mundo como um parasita usa seu hospedeiro. Os afetos como o amor e o ódio não são impulsos ou instintos, eles são em grande parte resultado de um aprendizado, que envolve o mundo em sua totalidade. O narcisismo fecha os afetos em um sistema de justificativas e racionalizações, algo que conduz a habilidade de amar a um processo de entropia. É por narcisismo que alguém pode se entender e se declarar como alguém que defende os direitos humanos e que almeja por uma sociedade orientada pelo amor enquanto suas ações no espaço público causam sofrimento, ignoram a riqueza e a delicadeza da subjetividade alheia, enquanto seus comportamentos permanecem na mesma estrutura de poder que supostamente está sendo criticada. O narcisismo confunde liberdade e poder, gerando assim uma sociedade que reúne ao mesmo tempo ações políticas desenfreadas e uma estrutura de poder que se mantém indiferente a todos os vulcões e terremotos de cada ego adoecido.

A profecia de Tiresias para a mãe de Narciso foi: " Ele terá uma longa vida, se não conhecer a si mesmo. " Fantasias e afirmações fortes nas palavras apenas são inofensivas, porque não realizam de fato nada. Na busca pela identidade não existem riscos, nem para o indivíduo nem para o estado. As ações e as relações humanas criam poder, mas o indivíduo que age não pode mais fantasiar com quaisquer possibilidades, a realidade corrige a imaginação de forma concreta e decisiva. Igualmente, o indivíduo que ama de fato, que não apenas quer se declarar como alguém que ama, tem suas fantasias e expectativas corrigidas e limitadas pela realidade do outro, que se torna mais concreta conforme a relação se desenvolve. A adoração cega da liberdade resulta na impossibilidade de se construir o poder necessário para ações políticas efetivas. Eis porque a democracia contemporânea promete muitas liberdades e oferece boa parte delas enquanto sustenta diversas estruturas de poder corrupto as tornando imunes à ação da população. Nossa cultura narcisista se sustenta em demandas psicológicas tolas. O indivíduo que se entende como oprimido quer se emancipar sem fazer o esforço necessário para ter empatia pelo seu opressor e libertar assim ambos da relação de poder corrupta por amor e desejo. Na simplicidade do ódio e da distância o oprimido se deleita com sua identidade de alguém que luta, assim como Nêmesis fez de Narciso quem ele foi.

O mito de Narciso narra a desgraça de alguém que desejava o próprio " eu " por não saber como desejar, porque o desejo determina. Narciso não soube amar ninguém, e por isso conseguia sustentar a ideia de amor apenas com alguém que não o amava. Narciso poderia ter sido um tirano ou um revolucionário em sua mente, em seus jogos de palavras. Mas ninguém poderia se importar com meras possibilidades, ninguém além de uma Eco. O mito de Eco e Narciso tem dois protagonistas, mas apenas um é bem conhecido. Eco tinha uma bela voz, mas foi amaldiçoada por Hera por ser falante demais, por fazer uso frívolo da palavra. Eco era capaz apenas de repetir as palavras dos outros, nunca fazendo suas próprias afirmações. Além de sua voz, ela não tinha nada, nada que pudesse persistir independentemente de chamar ou não atenção. Narciso era um homem de palavras apenas, de possibilidades vazias e de uma aparência muito bela. Eco se apaixonou por essa mera aparência e permaneceu incondicionalmente apaixonada por alguém que a rejeitava completamente, porque a mulher que era apenas uma voz tinha que amar o homem que era apenas devaneios. Ela precisava desesperadamente de alguém que afirmasse algo por ela, para que ela pudesse repetir, e Narciso precisava desesperadamente de alguém que não o amasse, para que ele pudesse sustentar a ideia de amor sem ter sua imaginação corrigida pela realidade de um outro.

As democracias contemporâneas produzem esses tipos em massa. O Narciso é obcecado por permanecer repleto de possibilidades sem perder de vista sua bela imagem ilusória, portanto ele aceita na prática qualquer contrato que preserva essa liberdade e compra qualquer coisa que faça promessas vazias. No fim das contas, ele não quer atuar em nada, ele não sabe querer, mas sua imaginação precisa usar o mundo de alguma forma. Por isso basta marcar um calçado com uma marca característica e o nome da deusa da vitória para que Narciso o compre por praticamente qualquer preço e se sinta um atleta glorioso enquanto o usa. Por isso basta espelhar os devaneios de um Narciso para que ele se apaixone, e basta mostrar-lhe algo inesperado ou fazer-lhe alguma exigência para que ele volte para si . A Eco busca algo para repetir, algo que pareça bonito, portanto a propaganda pode fazer a oferta criar a demanda. Alguém que busca conforto na repetição do discurso narcisista consegue apenas ídolos. Citar frases bonitas, assumir o papel de repetir rigorosamente alguma contribuição importante e propagar memes são os passatempos favoritos de uma Eco, quando ela não está ocupada se dedicando a amar algum personagem, falso e extravagante o bastante para ser tomado como um ídolo. Essa carência faz de indivíduos que se enquadram propositalmente em esteriótipos objetos de desejo. Essa dualidade é anterior às categorias de homem e mulher.

Quando se trata de crítica social, é comum que o discurso psicológico seja acusado de ser subjetivismo, de ser um discurso intrinsecamente conservador por não ir direto aos temas da revolução. Mas note que não se pode esperar muito da história de Eco e Narciso, que nenhuma melhora pode surgir enquanto complexos psicológicos e enganos filosóficos permanecem orientando e consumindo os mais diversos espaços de atuação e discussão. A revolução feita entre narcisistas seria uma monstruosidade, um mundo que duraria dez dias assim como o a lealdade de um narcisista a outro ser humano. Uma massa de Ecos não pode ser emancipada, com o culto aos Narcisos e suas narrativas violentas impedindo que desejos singulares sejam construídos. A posição de mudar a sociedade estritamente através da infraestrutura, como se a melhora na superestrutura fosse uma consequência lógica disso comete o mesmo erro que a filosofia que ignora por completo o corpo e as condições materiais da existência. O poder se afirma em sua forma mais bela na pluralidade, mas o desejo vazio pelo " eu " que ocorre inclusive dentro de movimentos emancipatórios dilui as singularidades dos indivíduos ou cria entre eles disputas de ódio abstrato.

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Notas:

*1: Sendo a consciência humana um objeto sobre o qual não temos praticamente nenhuma certeza, não faz sentido utilizar um conceito analítico ou empírico nesse contexto. Se a neurociência falhar em suas maiores promessas, o uso de conceitos como narcisismo não será apenas um recurso heurístico atual, mas a princípio a única forma de falar adequadamente sobre certos traços da psique humana.

*2: Uma ilusão pode ter grande poder de influência, e em vários casos o critério de verdade mais adequado é o valor de uma proposição para a vida. Este texto trata da distinção entre o falso e o ilusório.  

*3: A liberdade consiste no poder de imaginar possibilidades, de negar a realidade com ideias que constroem outros mundos possíveis. O poder se dá nas ações e laços que constroem o mundo presente, de maneira concreta. A liberdade abre e o poder determina. Este texto discute a relação entre poder e liberdade com mais detalhes.

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