As possibilidades filosóficas do ensino superior

I – Sobre a cultura acadêmica

A imagem da torre de marfim foi muito utilizada para descrever a cultura acadêmica, em alguns momentos como crítica a uma postura considerada por muitos elitista e displicente com os problemas da sociedade e, em outros, como um elogio do espaço de contemplação profunda e distanciamento das ondas políticas que uma universidade oferece na visão de alguns intelectuais. Embora essas diferentes perspectivas sejam contrárias na forma de valorar o ensino superior, ambas reconhecem nas universidades e na cultura acadêmica uma mesma característica – um grupo restrito de intelectuais que se mantém em grande medida distante das demais esferas da sociedade. Mas em que medida e de que forma esse grupo (os acadêmicos) pode ser considerado restrito ?

Os acadêmicos constituem um grupo restrito no sentido de que uma universidade é regulada por regras objetivas que admitem alguns perfis intelectuais e recusam outros. Universidades são instituições, e como quaisquer outras instituições elas são financiadas com alguns propósitos em mente e são geridas por uma estrutura hierárquica e burocrática para que tais propósitos sejam atingidos. Não é concebível que o governo ou qualquer entidade privada circule capital sem que isso seja um investimento com expectativa um retorno ( não necessariamente financeiro ), ou seja, embora o discurso do conhecimento pelo conhecimento apareça frequentemente no público que frequenta as universidades, certamente não é esse o pressuposto da estrutura universitária.

Não é relevante para esta linha de reflexão a definição de quais são de fato os pressupostos das universidades ou as intenções dos grupos que as projetam e financiam. O lucro com patentes, a solução de problemas sociais e a preservação das obras que constituem nossa cultura são motivações possíveis, entre outras, que não são mutuamente excludentes e que variam em grau de caso para caso. O que é relevante neste exercício é que necessariamente uma universidade tem uma estrutura para que seus objetivos sejam atingidos e que , por consequência, o público que frequenta a universidade trabalha sob essa estrutura, posto que a contratação de profissionais obedece uma lógica de investimento com expectativa de retorno e que a hierarquia da universidade é constituída precisamente por esses profissionais, que por um lado aplicam regras sobre o restante do público universitário e por outro são eles mesmos submetidos a determinadas regras de conduta e discurso.

As regras de funcionamento e orientação das universidades variam em forma e quantidade, mas seguem em todos os casos algumas diretrizes gerais. Toda estrutura universitária preza pela eficiência da instituição na formação de profissionais qualificados, na produção de obras úteis e na execução de, quando existem, projetos de extensão com efeitos positivos na comunidade. Essa eficiência é definida tanto pela expectativa de que os resultados sejam obtidos na máxima quantidade possível sem sacrifício da qualidade quanto pela expectativa de que certamente os recursos investidos nessa estrutura não são desperdiçados. Evidentemente, essa orientação deve ser seguida pelos profissionais do meio, que por sua vez devem orientar também o restante do público.

Essa expectativa de eficiência define a rigidez e o tipo das regras no meio universitário. Espera-se que o trabalho desenvolvido em uma universidade tenha um compromisso objetivo, ou seja, que a forma de funcionamento do meio não resulte apenas no benefício individual e subjetivo de cada parte envolvida, mas também e prioritariamente na aplicação dos objetivos mencionados anteriormente. Desse compromisso objetivo decorre um compromisso com a noção de objetividade, posto que estamos tratando de um tipo intelectual de trabalho que é justificado no discurso de forma teórica. Essa noção de objetividade é dada antes pelo fato de que indivíduos são alocados em uma instituição do que pela convicção filosófica desses indivíduos de que existe uma verdade única, de que existe uma máxima aproximação possível, de que existe um discurso adequado para falar na realidade, etc. Dada de princípio na estrutura política e econômica da instituição, a objetividade como eficiência de um investimento tem muito mais influência sobre a objetividade como critério de verdade do que o contrário. Mas em que medida a influência no sentido contrário ocorre?

Os grupos responsáveis pela existência e pelo financiamento das universidades não dominam o conhecimento necessário para que alguém possa definir em cada área do conhecimento quais devem ser as diretrizes do trabalho. Isso deve ser evidente em uma cultura de especialistas como a nossa – se um indivíduo conhece um determinado campo bem o bastante para atuar nele profissionalmente não lhe resta tempo para conhecer igualmente os demais. Por consequência, os profissionais acadêmicos trabalham sob uma estrutura de orientação objetiva, mas são eles que definem a forma como essa estrutura é efetivada. Os acadêmicos com suas teorias, conceitos, juízo, argumentos e interesses definem o que pode ser um trabalho de qualidade, um profissional qualificado, etc.

Quando um profissional acadêmico exerce sua posição e organiza o comportamento e o discurso no meio universitário, seja "de cima para baixo" através de sua posição na hierarquia ou a partir do exemplo, da disciplina de si mesmo, esse profissional por um lado reproduz a estrutura que foi contratado para reproduzir e por outro fornece o significado no discurso dos termos como objetividade, eficiência, qualidade e utilidade. Dessa forma o discurso acerca da verdade que permeia o meio acadêmico é constituído ao mesmo tempo pelo interesse de que a estrutura continue sendo reproduzida e pela influência que as perspectivas subjetivas dos acadêmicos tem sobre a justificativa da existência dessa estrutura e sobre o interesse do público em geral de frequentar as universidades de alguma maneira. Notemos, porém, que essa influência é desigual, no sentido de que a disciplinação da subjetividade para que esta possa ser aceita no meio objetivo é mais forte que a adaptação da objetividade aos interesses e perspectivas pessoais dos acadêmicos e do público. Essa conexão entre a circulação de capital, os interesses de um determinado grupo na sociedade, a estrutura da instituição, as perspectivas dos profissionais contratados, público universitário e o conhecimento tem uma série de implicações éticas e epistemológicas.

De um ponto de vista ético, podemos notar que se cria no meio acadêmico uma moralidade em torno da objetividade – assim como existe uma em torno do trabalho – que existe por causa do capital circulado e dos recursos direcionados a determinados objetivos e que é justificada segundo teorias, conceitos, etc. Indivíduos devem se submeter a uma disciplina para que seres vivos e pensantes possam reproduzir uma estrutura externa a eles em sua origem, e essa disciplina não se manteria sem a formação de preceitos morais relacionados. Uma vez que essa disciplina é dada pela instituição e por sua estrutura e significada pelo conhecimento dos acadêmicos contratados, se estabelece que para que um indivíduo faça parte da academia ele deve se adaptar a determinadas regras de discurso e de conduta particulares do grupo de profissionais que orienta o meio em questão. A partir desse ponto, determinadas posturas intelectuais que não são próprias para operar nesse meio são excluídas. Como a influência da objetividade como reprodução da estrutura é a predominante no meio acadêmico, muitos indivíduos são excluídos da estrutura universitária em função se suas respectivas situações sociais e peculiaridades culturais, independentemente do valor das ideias desses indivíduos , e, além disso, aqueles que são admitidos no meio são em grande medida instrumentalizados, no sentido de que suas perspectivas subjetivas são adaptadas – frequentemente ao ponto de serem distorcidas – a uma disciplina coletiva. Dessa forma perspectivas que são externas ao meio acadêmico em virtude de fatores políticos e econômicos tendem a permanecer fora do meio, ou a adentrar nele de forma muito lenta e geralmente distorcida.

De um ponto de vista epistemológico, podemos observar que a noção de objetividade como um critério de verdade através do qual um acadêmico se coloca acima do chamado " senso comum " não é dissociável de preocupações com financiamento e posição política. O discurso epistêmico na academia, porém, muito raramente reconhece essa influência e geralmente a esconde sob a noção de "conhecimento pelo conhecimento". Tendo uma posição de autoridade baseada no conhecimento, é fundamental que um acadêmico defenda sua posição política e econômica como se fosse um juízo objetivo de conhecimento. Do contrário, sua autoridade intelectual seria desmistificada, posto que argumentos e teorias não produzem por si mesmos autoridade, apenas liberdade, e que em termos de autoridade bruta um acadêmico não tem poder nenhum, nem mesmo sobre si próprio. Dessa necessidade de manter a autoridade estabelecida através de um discurso epistêmico resulta que várias noções fundamentais para qualquer esforço intelectual são distorcidas segundo essa influência ocultada. A criatividade é tomada como a habilidade que um indivíduo tem de fazer comparações inusitadas entre referências estudadas no meio acadêmico, porque é importante para a preservação da superestrutura da academia a ideia de que o conhecimento arquivado na universidade é indispensável e de que o conhecimento não arquivado pela universidade é não apenas dispensável mas também inválido. Da hierarquia intelectual acadêmica resulta que o meio universitário é extremamente resistente a ideias que ainda não são suficientemente reproduzidas entre os acadêmicos. Ideias originais não são capazes de reproduzir a estrutura "de cima para baixo" da relação entre doutores , mestres e graduandos, independentemente do valor dessas ideias para a sociedade. Cada acadêmico formado é um herdeiro da tarefa de reproduzir uma determinada estrutura, incluindo o tipo de formação que recebeu. A negação da originalidade – um contrassenso que não resiste a um breve olhar ao tipo de obra que se estuda nas universidades – sob uma ideia de objetividade caracteriza o discurso que faz da universidade um meio no qual o critério central de seleção é a reprodutibilidade do discurso, em vez de sua veracidade ou valor.

II – Sobre a filosofia acadêmica

A filosofia é entendida na academia como uma área do conhecimento, talvez como a área primordial da qual todas as demais se ramificam. A definição do que significa propriamente filosofia é um tópico em geral colocado em segundo plano, considerado por muitos subjetivo, embora seja evidente que qualquer campo de atuação aplica na prática uma definição de seu objeto. Se existe uma área acadêmica dedicada à filosofia, é evidente que essa área deve ser delimitada em relação às demais e que, portanto, existe alguma definição de filosofia sendo aplicada na prática, se não também no discurso. A definição de filosofia que se utiliza na academia é a mais superficial possível. São filosóficas aquelas obras que tradicionalmente são consideradas filosóficas por terem sido escritas por filósofos, e são filósofos aqueles que discutiram os temas teóricos derivados do ponto de origem do termo filosofia e da tradição considerada filosófica – a Grécia Antiga. Qualquer aprofundamento para além disso é considerado como uma perspectiva subjetiva de filosofia, porque a área de filosofia é muito mais definida por uma coleção de autores e obras do que por algum traço teórico característico como a biologia ou a química. Mas em que medida é adequado tratar da filosofia como uma área, no mesmo sentido que a física ou a antropologia são áreas?

A partir de sua raiz etimológica, "filosofia" significa simplesmente amor ao conhecimento ou amizade ao conhecimento. Ser filósofo é ser amigo do conhecimento ou amar o conhecimento. É conhecimento comum no meio acadêmico que os especialistas universitários em filosofia rejeitam com forte repulsa a simplicidade dessa definição. Mas a questão fundamental é por quê isso acontece. Os chamados filósofos, um tipo de intelectual que se tornou aos poucos eminente na Ásia, na África e na Europa Meridional desenvolveram uma cultura complexa de obras e tradições intelectuais em uma época na qual as instituições de preservação e continuidade do legado intelectual ainda eram um experimento, que alguns poucos visionários concebiam. Um exemplo é a famosa academia de Platão, que apesar de concordar com seu mestre sobre a insuficiência dos livros para o debate sobre um tema, entendeu que se a preservação da história intelectual dependesse apenas do debate, muitas ideias de valor se apagariam com o passar do tempo. A partir do ponto em que os esforços de institucionalizar o conhecimento foram bem sucedidos ( não é relevante aqui discutir o exato momento e local, apenas apontar que isso ocorreu ) , também foi institucionalizado o legado do tipo de atividade intelectual que foi denominado na Grécia Antiga como filosofia, um termo que passou então a denominar uma área do conhecimento. O conhecimento é dividido em áreas por uma necessidade administrativa e, talvez, também didática. Não existem razões teóricas para que existam áreas do conhecimento também no sentido intelectual, como se o pensamento em si fosse dividido dessa forma. O pensamento é simplesmente isto, o pensamento, e o conhecimento é um resultado igualmente unitário. A divisão do conhecimento em áreas existe por razões práticas, como pelo fato de que é necessário separar as obras intelectuais para que elas sejam arquivadas de uma maneira que facilite o controle e o acesso. Entretanto, ocorre com a divisão do conhecimento um dos fenômenos descritos na seção anterior, aquele no qual motivações práticas são colocadas em andamento com justificativas teóricas, algo que distorce as teorias de acordo com motivações anteriores. Essa ferramenta de organização institucional logo se torna uma característica da essência do conhecimento, através da reprodução de um discurso de geração para geração, até que o discurso se torna realidade. A partir disso surge o pensamento antropológico, o pensamento sociológico e o pensamento filosófico definido como uma área.

A filosofia passa a ser – a precisar ser – tratada como uma especificidade, porque do contrário os acadêmicos interessados no que se chama de filosofia não encontrariam as suas condições de trabalho e posição social almejadas. Isso se agravou com o passar dos séculos, até este momento no qual o avanço da ciência definida em áreas parece ( apenas parece ) inutilizar a filosofia, a não ser que os filósofos universitários encontrem temas específicos e exclusivos que justifiquem a posição de que a filosofia não foi superada e ultrapassada. Isso aconteceu. Os filósofos acadêmicos passaram a abordar temas cada vez mais circunscritos nas próprias obras filosóficas e teorias cada vez mais, digamos, "esotéricas". Tratando neologismos como conceitos filosóficos e tomando teorias como objetos de estudo ( ex. estudar o estudo de Kant sobre a ética ), se abre a possibilidade de uma infinita reprodução de conteúdos específicos e exclusivos da área, que ninguém é capaz de compreender e desenvolver sem fazer parte desse meio. É evidente que isso resolve metade do problema, o fato de que os acadêmicos interessados no que se chama de filosofia correm risco de extinção sem justificativas como essas, mas isso apenas agrava a outra metade, o fato de que a filosofia passou a ser considerada por muitos como algo inútil. Essa estratégia que significa um rompimento com as demais áreas de atuação de fato define a filosofia acadêmica como algo inútil em comparação com o que se faz nas demais áreas.

É interessante notar o quanto a filosofia foi obscurecida por essa sucessão de discursos estratégicos que se tornam discursos ideológicos. A filosofia definida como amor ao conhecimento não é apenas uma definição diferente em suas características das outras de outros autores considerados filósofos (ex. filosofia como criação de conceitos), mas é também diferente em seu tipo e em seu assunto. Enquanto outras definições de filosofia a tomam como um determinado tipo de exercício intelectual, a definição socrática a toma como uma disposição virtuosa de espírito, como uma característica psicológica e moral do filósofo. Nessa perspectiva, não é este ou aquele hábito intelectual que define quem é ou não filósofo, mas a espécie de motivação intelectual que existe nesses hábitos. É bastante claro que tal definição de filosofia nunca poderia ser institucionalizada, pelas mais diversas razões práticas e morais. Mas, desconstruindo o hábito de tratar a viabilidade prática como verdade, devemos nos perguntar se essa inviabilidade pode realmente ser tomada como um argumento contra essa definição considerada repulsivamente simplista.

É possível que em vez do erro estar na simplicidade da filosofia como uma disposição de espírito o erro esteja de fato em toda a complicação que se sucede nas discussões sobre o papel da história da filosofia e dos temas filosóficos, que parece pressupor que ler estes ou aqueles livros e falar nestes ou naqueles assuntos pode fazer a diferença entre a filosofia e as outras áreas. Parece-me que há mais interesse prático que sabedoria na ideia de que não se pode ser um cientista filosoficamente sem a participação em um determinado meio de auto-declarados filósofos. O mesmo pode ser dito sobre a ideia de que aquilo que se produz academicamente sobre filosofia é imprescindível para a sociedade mesmo se tratando de discussões quase completamente isoladas de outros grupos.

III – Sobre o ensino universitário do que se chama de filosofia

A educação acadêmica tem algumas tarefas distintas da educação média e da básica, mas também algumas tarefas compartilhadas. A educação baseada em instituições faz parte de um projeto cultural, de intervenção na cultura, algo que pode ser facilmente observado nos discursos iluministas e positivistas, sucedidos pelo discurso secularista. Mesmo no seu aspecto de preservação de tradições, uma instituição de ensino preserva tradições que provavelmente seriam extintas sem alguma medida de preservação. Essa intervenção cultural pressupõe determinadas noções de cidadania, de ética, de justiça, de prosperidade de civilidade, além de noções que variam com mais frequência como as de individualidade e de direitos humanos. Não vou desenvolver para este exercício uma discussão sobre essa parte da tarefa educacional. O que nos interessa neste exercício é a parte da tarefa acadêmica que é exclusivamente acadêmica.

Uma universidade tem como um de seus propósitos principais a formação de uma vanguarda intelectual, de uma cultura de intelectuais que fazem descobertas científicas, criam obras artísticas, desenvolvem tecnologias e atingem um alto nível de conhecimento que é compartilhado por eles em alguma medida com a comunidade. Foi desenvolvido na primeira seção que sem expectativas como essas as instituições do conhecimento não seriam financiadas. De maneira semelhante, um professor e pesquisador não receberia um financiamento ( e uma posição de autoridade ) indisponível à grande maioria dos professores se não existisse a crença de que esse professor e pesquisador em particular pode realizar algo inalcançável para os demais. Um tratamento diferenciado para um intelectual que é considerado diferenciado. Isso constituí a formação de uma elite, no caso a elite doutoral, independentemente dos ideais políticos dos professores acadêmicos, que geralmente justificam pelo discurso teórico o interesse prático de que isso seja mantido.

O que distingue a elite doutoral em filosofia do restante do público e seu " senso comum " ? Primeiramente, o tempo de permanência na universidade e o grau de especialização do estudo realizado. Um doutor passa por um processo disciplinar mais longo e intenso que um bacharel ou um diletante, por exemplo. A moralidade construída em torno da objetividade é encarnada no doutor, o indivíduo que provou diante dos demais doutores que interiorizou o tipo de discurso que objetivamente, no sentido instrumental, é associado a sua área. É por essa característica que as teses de doutorado variam muito no tema mas quase nada na forma – quem tiver coragem o bastante pode tentar contestar isso apresentando um trabalho de doutorado que não segue as normas técnicas e os preceitos acadêmicos de pesquisa da respectiva área. Em segundo lugar, a partir da disciplina, se estabelece uma especificidade de pensamento tal como a descrita na seção anterior, um pensamento circunscrito em uma tradição com amplo número de vertentes mas muito específica em relação ao conjuntos dos campos acadêmicos de atuação. Em terceiro, provada a disciplina e a especificidade de pensamento diante de algumas autoridades atuais, o indivíduo se torna uma autoridade com o direito de ocupar uma posição de elite na academia, de ministrar aulas, de publicar em espaços profissionais, etc. Um doutor em filosofia é um indivíduo que é tomado como uma autoridade intelectual, devido a sua disciplina de pensamento, ao seu domínio de um tipo de discurso e a seu comportamento, na área acadêmica que é considerada como destinada à filosofia. Não existe nada que impossibilita que um indivíduo que não é envolvido com o meio acadêmico chegue a uma conclusão profunda e singular sobre algum assunto importante. O que esse indivíduo não pode ter é o comportamento e o conhecimento das regras de discurso, muitas vezes contra intuitivas, da academia. Isso diferencia os filósofos acadêmicos e os amadores.

O ensino superior é em grande medida coordenado pela elite doutoral. Como mostrado na primeira seção, são os especialistas contratados que fornecem o significado e o sentido efetivo dos objetivos que os grupos idealizadores e administradores das universidades concebem apenas de maneira vaga. A figura do doutor, seja pela autoridade direta ou como exemplo de conduta, regula o ensino nas universidades. Evidentemente o meio acadêmico considerado da filosofia não é exceção. Temos estabelecido então que o ensino acadêmico de filosofia é coordenado por uma elite intelectual que é uma elite no sentido de que se trata de um grupo restrito. Não é a riqueza ou profundidade do pensamento que define quem pode ou não ser parte da elite doutoral. Um doutor pode viver apenas da reprodução de teses alheias, e um amador pode ser incrivelmente original e preciso. A possibilidade de adequação ao meio acadêmico é o critério de exclusão, que envolve fatores econômicos, políticos e culturais, com maiores restrições a umas classes sociais do que a outras. Dessa forma, o ensino acadêmico de filosofia forma o indivíduo para reproduzir a estrutura acadêmica, para reproduzir o discurso de conhecimento que justifica a existência do meio acadêmico em filosofia e para atuar de uma forma que define a filosofia como uma especialidade.

Em geral, se justifica a existência de um curso acadêmico de filosofia com afirmações como " este curso forma o indivíduo para pensar criticamente e atuar de maneira valorosa no meio acadêmico e na comunidade ", afirmações que oferecem determinadas virtudes ao indivíduo como resultado do processo de formação. Uma das virtudes que os cursos de filosofia oferecem é uma formação filosófica, ou seja, o preparo do indivíduo para que ele possa atuar filosoficamente de alguma maneira. Um dos pontos fundamentais deste ensaio, porém, é mostrar que existe uma grande estrutura por traz do ensino universitário de filosofia e que essas promessas ao indivíduo em formação e à comunidade são elementos de um discurso que sofre grande influência de determinados interesses práticos. A própria crença de que se pode ensinar filosofia é resultado do mesmo processo que resulta na ideia de que a filosofia é uma área de conhecimento.

" Ensinar " pressupõe que um indivíduo tem algum conhecimento que pode transmitir a outro que não o tem. Existem no meio acadêmico muitas tentativas de se chegar em uma definição de ensino que não seja tão ortodoxa e baseada na transmissão. Entretanto, esses esforços didáticos mostram pouco efeito sobre a estrutura acadêmica com sua rígida hierarquia e seu funcionamento " de cima para baixo ". Isso não deveria surpreender, considerando que existe no meio universitário a ideia de " formação " que impõe ao indivíduo um projeto de repetição da estrutura. "Ensinar filosofia" apenas pode ter significado na perspectiva de que filosofia é uma determinada coleção de conteúdos e comportamentos. Desse ponto de vista, não há na realidade nada a que se discutir quanto às possibilidades do ensino de filosofia. As possibilidades do ensino de filosofia como reprodução da estrutura acadêmica da área são exatamente aquelas que são atualmente realizadas. Esse tipo de ensino forma indivíduos, condiciona hábitos intelectuais para formar professores da reprodução desse modelo e comentadores de obras consideradas filosóficas. Com isso, os conteúdos da tradição de pensamento que chama-se de filosofia são preservados e mantidos em relativa visibilidade, através de infinitas discussões sobre livros e jogos de palavras que geram a impressão de que aquele meio acadêmico está de fato trabalhando em algo de valor.

Para além desse ponto de vista há muito pouco a se fazer no espaço acadêmico sem descaracteriza-lo. A filosofia como uma disposição de espírito não pode ser cultivada com a mão pesada da hierarquia acadêmica, apenas sufocada em uma confusa rotina de tarefas que em sua maioria são fúteis para o indivíduo, embora sejam fundamentais para reprodução da estrutura. Além disso, ela não pode ser cultivada por ninguém além do próprio indivíduo. "Conhece-te a ti mesmo". Se a elite doutoral começasse a falar em inspiração em vez de formação, em bons argumentos em vez de autoridade intelectual, em debates em vez de avaliações, a universidade poderia se tornar um espaço de encontro para os amigos do conhecimento, um espaço no qual o potencial intelectual inato do ser humano poderia tomar uma forma digna de ser chamada de filosofia. Apenas nessa forma não intrusiva, verdadeiramente convidativa, um espaço poderia propiciar a filosofia de alguma maneira, a filosofia como disposição de espírito, aquela que resultou nas grandes obras que são amplamente estudadas e comentadas ao redor do mundo. Me pergunto, porém, quantos dos acadêmicos na área aceitariam isso que implica na ausência de autoridade e de controle sobre os resultados. Certamente é mais confortável escrever artigos perfeitamente acadêmicos, técnicos e objetivos, sobre todas a maravilhosas transformações possíveis através da obra deste ou daquele autor.

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