I - Definição comum
Eu
frequentemente observo alguém incomodado com a arrogância alheia ou
alguém satisfeito sem ter o que deseja por se considerar humilde. Você lendo isto provavelmente também.
Quando
isso acontece, se mostra uma característica muito interessante de
nossa cultura. Aparentemente a humildade é considerada como uma
virtude tão bela que é capaz de enobrecer uma situação de
miséria, enquanto a arrogância é capaz de fazer um sucesso parecer
uma falha.
Quem
fizer uma pesquisa no Google sobre humildade, ou simplesmente
perguntar para alguém, vai ler ou ouvir alguma coisa como estes
exemplos a seguir:
“Característica
de pessoas francas, que aceitam a verdade e que têm senso de
realidade apurado. Reconhecem
seus erros e acertos com a mesma naturalidade. Não
subestimam nem supervalorizam fatos ou a si mesmos”
Esta
é uma versão bem formulada de várias outras que li e ouvi. Uma
pessoa humilde é uma pessoa plenamente honesta. Agora vejamos uma
para definir o comportamento arrogante:
“Pessoa
que tem atitude superior à solicitada na situação ou momento. Que
abusa da autoridade para efetuar um ato com intuito de demonstrar que
é melhor ou mais importante que outro”.
Simples
e suficiente, certo? A humildade é sempre boa e é o completo oposto
da arrogância, que é sempre ruim. Quem age com humildade se mostra
uma pessoa sensata e quem age com arrogância demonstra estupidez ou
maldade. A vaidade, desse ponto de vista, é algo a ser reprimido,
porque sempre acaba no tipo de supervalorização destrutiva típica
dos arrogantes.
II – Humildade e arrogância não são opostos.
Entretanto,
existem vários problemas com essa forma de pensar. De várias formas
diferentes, a
humildade e a arrogância têm resultados semelhantes.
Ser
humilde significa perceber-se como limitado. Mas você estaria sempre
certo(a) a respeito disso? Você nunca viu uma pessoa de extremo
talento se reduzir e não buscar algo que poderia ter e que deseja
porque se julga incapaz e considera irresponsabilidade arriscar? Você
mesmo (a) já deve ter feito isso, e alguém provavelmente te
explicou que você era capaz, mas você não soube ouvir.
Ser
arrogante significa considerar-se, sempre, capaz de tudo. Se você
não tem algo, é porque não quis. Se quisesse teria, porque você é
muito importante. Pessoas arrogantes aprendem muito mais devagar,
porque assumem de início a vitória, de tal forma que um sujeito
mais dedicado de menor talento tem mais potencial que um arrogante
talentoso. Você sonha muito, você realiza pouco.
A
humildade e a arrogância não parecem ser qualidades que um sujeito
tem, mas sim algo que se mostra sempre no comportamento e como um
estado, mesmo que dure muito. É quando alguém se reduz que aparece
a humildade, é quando alguém se exalta que aparece a arrogância.
Sem o comportamento essas palavras nunca apareceriam, e quando o
comportamento muda, também chamamos a pessoa de algo diferente. Isso
nos mostra que ambos são estados, não qualidades.
Alguém pode estar humilde ou arrogante, mas ninguém é algum
desses na essência.
Ambos
esses estados parecem causar um bloqueio na relação entre a imagem
que um sujeito tem de si mesmo e o que acontece com ele, e com isso
temos a confusão e a infelicidade. Ambos os tipos de sujeito se
preocupam mais com a manutenção de suas ideias do que com a mudança
da realidade.
A
diferença está no seguinte: O humilde prejudica apenas si mesmo, o
arrogante aos outros também. Quem não gosta de uma pessoa dócil e
humilde, que obedece e absorve nossas regras? Porém,
você não sabe se a pessoa que sorri e se curva está feliz.
Talvez você não se importe. Com
a infelicidade do arrogante, por outro lado, você certamente se
importa! Isso porque ele é um perigo, ele tenta te rebaixar e às
vezes consegue. É importante para você saber que ele é infeliz.
Ambos
os casos mostram que a aparência da pessoa, em termos afetivos, não
basta para compreendermos o que ela realmente está vivenciando.
Ambos o humilde e o arrogante podem estar infelizes, mas geralmente
sorrindo. O arrogante para transmitir uma imagem de sucesso, o
humilde para não importunar aos outros com uma imagem inesperada e
indesejada.
Ambos se preocupam muito com a imagem que transmitem,
aparentemente para o próprio prejuízo.
Além
disso, quem sabe obedecer também sabe mandar. Quem gosta de obedecer
também deve gostar da existência da autoridade. Tanto o
voluntariamente submisso quanto aquele que manda são sujeitos
apaixonados pela autoridade, e ambos reforçam as normas vigentes
pela maneira de agir. Aquele
que chegar a um estado diferente da humildade ou da arrogância
provavelmente estará preparado para realizar mudanças em si mesmo e
na cultura.
Usamos
qualquer desculpa para humilhar alguém quando temos medo e inveja,
ou a nós mesmos quando temos preguiça demais para vencer. Gostamos
da humildade como mecanismo de defesa, já que uma gafe cometida
humildemente não nos fere tanto quanto uma cometida com um ar
pretensioso. Também nos alegramos quando alguém reconhece um erro,
mesmo que isso em nada nos beneficie, porque gostamos quando uma
pessoa se mostra menos nociva.
Por
esses motivos, me parece que nossas definições de humildade e
arrogância não refletem a verdade e servem muito mais para tirar
proveito dos outros. Quem se identifica com qualquer uma das duas
tende a desconhecer a si mesmo.Uma investigação mais cuidadosa
parece nos mostrar que esses estados parecem, na verdade,
complementares.
III – Saciar a vaidade é uma necessidade básica.
Se
a humildade e a arrogância são tão diferentes e tão iguais ao
mesmo tempo, deve ser porque são contrapartes, são inversos
necessários um para o outro. A vaidade parece ser o centro dessa
questão. Considerando
que todos os humanos que já conheci e até os outros animais
inteligentes mostram traços de orgulho ou de vergonha, penso que a
vaidade não pode ou deve ser extinguida de maneira alguma.
Penso
também que certas pessoas vivem uma extrema e confusa infelicidade
que chamamos de depressão clínica, e essa doença chega ao ponto de
provocar a morte por suicídio, uma triste aberração para qualquer
um que conheça um pouco da psicologia humana. Um exemplo recente disso foi o suicídio do ator Robin Williams que, segundo os
critérios mais comuns de sucesso, era famoso por bons motivos, rico
merecidamente, tinha uma família que aparentemente o amava e não
tinha nenhuma deficiência física. Que imagem o sujeito teve que
fazer de si mesmo para chegar a esse ponto. Uma simples imagem que
cega e devora aquele que a forma.
Penso
também que pessoas que realmente amam a si mesmas – diferente da
maneira ilusória de amar dos arrogantes – se desenvolvem muito ao
longo da vida e sobrevivem a grandes dificuldades como se fossem
pequenas. Muitas vezes essas pessoas conquistam coisas que seriam
melhor conquistadas por outros de maior talento e esforço, mas que
não tem essa força vital, esse amor próprio, para continuar, para
persistir. Algo simples como uma consideração boa de si mesmo faz de um sujeito comum uma fonte de luz e de vitalidade.
Pensando
nessas coisas todas, a vaidade, o desejo por uma boa imagem de si, me
parece como um apetite necessário da vida inteligente, já que ela
se produz na mente e que dependendo de como lidamos com ela nossa
mente se fortalece ou se destrói até levar consigo o corpo.
Outro
exemplo de apetite é a fome. Nosso corpo precisa de certos elementos
para se manter. Se ele os obtém, cresce. Se não, morre.
Curiosamente, se lidamos mal com a fome, nos alimentando mais por
motivos psicológicos do que físicos, desenvolvemos transtornos.
Quem se alimenta muito pouco apesar de sentir fome por causa de um
padrão de beleza imposto passa a ter pouca satisfação nas vezes em
que se alimenta, porque o alimento passa a ser uma fonte de más
ideias. Quem tem esses hábitos cria uma associação doentia entre
um ato e um estereótipo, e vive uma confusão material que deveria
ser resolvida primeiramente nas ideias.
Pensando
assim, talvez a vaidade seja semelhante. Quem busca demais uma imagem
positiva nos olhos de outros, deve pensar que não é capaz de
gerá-la por conta própria. É verdade que não podemos amar a nós
mesmos absolutamente por conta própria, mas quem dá a última
palavra sobre como pensamos sobre nós, somos nós mesmos.
Costumamos, porém, ter dificuldades para estabelecer nossas próprias
ideias – não somos educados para isso – de tal forma que
precisamos encontrar alguma fonte externa, alguma superstição,
quando precisamos formar uma ideia de nós.
Quem
não enxerga isso tenta levar outras pessoas a fornecer essa imagem,
mesmo que elas não queiram. Esse é o arrogante, aquele que busca
tanto sua imagem que perde a capacidade de buscar qualquer coisa que
não seja mera imagem. A tristeza é insuportável, a necessidade de
amor e admiração, enorme. Porém, o comportamento do arrogante
raramente agrada, e mesmo quando agrada, ele não é capaz de
perceber o que isso significa e se vicia em seu comportamento.
Quem
precisa a todo custo se reconhecer como um não arrogante é o
humilde, que sacrificaria tudo o que tem para não se ver como um
anjo caído. A humildade é para a arrogância uma resposta diferente
que chega ao mesmo resultado. O humilde depende tanto das aparências
que às vezes é obrigado a se sujeitar ao arrogante, e talvez isso o
agrade. Assim se formam criaturas estranhas como o humilde que tem
orgulho disso e ataca quem não parece ser, e também os arrogantes cercados de pessoas humildes. Um precisa do outro para existir. Se
ninguém fosse arrogante, ninguém teria que ser humilde, e se
ninguém fosse humilde a arrogância desapareceria.
A
partir de tudo isso, me parece que quem pretende agir segundo a
verdade e de maneira mais conveniente deveria não rejeitar a
vaidade, assim como seria absurdo rejeitar a existência da fome. Percebo
algo menos óbvio que isso, também. Não deveríamos tentar
alimentar a vaidade com com
palavras e estereótipos.
Por exemplo, se dependemos da adequação a
alguma categoria como “rico”, “engraçado” ou “poderoso”
para satisfazer nossa necessidade de uma boa imagem, nós
vamos desenvolver uma tendência a repetir isso com outras
categorias, assim como uma pessoa que come por tédio é mais
propensa a comer por tristeza ou ansiedade em outra ocasião.
Se
dependermos de uma categoria para sermos satisfeitos, é provável
que um dia dependamos de quase todas que conhecemos, e isso é fadado
ao fracasso. Se dependermos tanto da palavra de outros, nunca iremos
dar a nossa própria como a última. Como as palavras de admiração
têm a capacidade de nos dar uma segurança temporária e fraca, mas
precisamos de alguma, nossa tendência é a de nos viciarmos nesse
processo, e o resultado é um sujeito humilde e arrogante.
Penso
que seria melhor se não buscássemos aos outros por motivos egoístas
desse tipo. Que necessidades exclusivamente
egoístas sejam resolvidas pelo próprio ego. A satisfação da
vaidade se dá pelos afetos de alegria resultantes da relação com
os outros, e a imagem é apenas o registro que fica na memória. A
boa imagem que guardamos em nós como palavras e estereótipos não é
a causa adequada dos bons afetos. Somos alegres quando de fato
melhoramos a nós e aos outros, e isso respeitando os critérios de
cada um, o que dificulta a tarefa, mas é inevitável.
IV – Um veneno imaginado
Uma
grande parte da humanidade buscaria antes a imagem de uma conquista
sem nenhuma conquista de fato do que uma conquista de fato sem sua
imagem. Talvez porque parece mais seguro registrar uma imagem do que
consultar a realidade ao redor constantemente. Nas ideias as etapas
de nossas vidas podem ter um fim, na materialidade não há nenhuma
etapa e talvez não haja fim. O hábito de negar a incerteza
da vida a todo custo, somada ao desejo de negar o sofrimento
absolutamente, resulta em estados psicológicos de fraqueza, entre
eles os que reconhecemos como humildade ou arrogância. Qualquer um
sabe que só é possível conhecer admitindo todas as dificuldades
disso, e só é possível ser alegre admitindo as dores e com elas
fortalecendo parte desejável da vida. Mas muitos são covardes
demais para agir segundo esse conhecimento simples.
Muitos
se preocupam mais com a forma do que com o conteúdo, mais com a
adequação a estereótipos do que com a afirmação da vida em si
mesmos e nos outros. Muitos têm uma mente educada para aprender
essas categorias moralizadas e examinar a distribuição das pessoas
dentro delas, e nada mais. Tudo que se trata com alguém que está
assim é uma perda de tempo.
O que se pode fazer é informar a vítima
sobre esse estado de servidão e esperar que ela decida despertar.
Toda a racionalidade se torna um mecanismo ineficiente de defesa
contra a realidade, nesse estado. Infelizmente, a ineficiência não
é completa, e os vestígios que um sujeito consegue obter por um
método falho embora aceito – portanto seguro – lhe parecem
melhores que a ideia de uma grande conquista que envolve alguma
espécie de desafio criativo além dos usuais, de adequação.
Nem
na humildade nem na arrogância sabemos amar aos outros e ao mundo,
porque intoxicamos tudo que está ao nosso redor com nossas
hierarquias. Qualquer moral baseada na hierarquia tem apenas esse
resultado, o de dificultar a conexão entre as pessoas, que é um
pressuposto de qualquer moralidade viável. O jogo da humildade é o
mesmo da arrogância, o de uma crença moralizada de que devemos nos
colocar em nosso lugar, mesmo que não façamos ideia do que isso
signifique. Essas crenças limitam nossos universos de ideias e de
ações, enquanto um movimento a favor da vida deveria expandir
nossas possibilidades até o último segundo antes do declínio
final.
Quando
temos muitos servos humildes por escolha própria, teremos também
alguns terríveis tiranos, e eles talvez pensem que não têm
escolha. Afirmar a um é afirmar ao outro, pregar a humildade é
fortalecer a tragédia social que gera tanta arrogância, uma
distorção na qual criamos vultos de outros sujeitos ao invés de
permitir um pouco de naturalidade às nossas relações afetivas ou
políticas, que são nesse estado ou de interesse egoísta ou de
desinteresse.
Quanto mais disputamos poder – imagem, hoje em dia
– mais nos deformamos, porque nos esquecemos de que o primeiro
passo para melhorar as coisas é gerar liberdade em nossas próprias
ideias.
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