Um esclarecimento para quem se interessa por filosofia

O que se segue é um trecho adaptado da seção de metodologia de um trabalho meu, no qual eu esclareço algumas distinções que muitas vezes não são feitas adequadamente. Seja qual for a sua intenção em se envolver com os estudos acadêmicos de filosofia, é muito importante que você saiba o que está fazendo e o que está tentando fazer, algo que mesmo alguns professores doutorados não compreendem, por exemplo quando tratam as práticas dos filósofos, dos comentadores, dos estudiosos e dos pesquisadores como se fossem uma única profissão e perspectiva. Além disso, acredito que muitos acadêmicos de outras áreas absolutamente não entendem que a pesquisa em filosofia não pode se adequar aos mesmos padrões que a pesquisa, por exemplo, na neurociência. De fato, mesmo alguns profissionais da área tratam os padrões técnicos como se fossem fatos da natureza ou estipulações absolutamente oportunas e inocentes. Por essas razões decidi compartilhar esse trecho do meu trabalho. Espero que isso possa esclarecer ( ou mostrar a existência de ) algumas questões importantes.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

De início, devo esclarecer que a pesquisa filosófica não é da mesma natureza que os tipos de pesquisa empírica nos quais se apoiam as chamadas ciências humanas. Além disso, deve-se notar que mesmo a parte conceitual e bibliográfica da pesquisa filosófica caracteriza uma exceção. Um cientista político, por exemplo, se ocupa de explicar ou narrar determinados fenômenos sociais e de propor determinadas ações a partir de seu conhecimento. Para tanto, seu trabalho necessita de dados empíricos da realidade a ser descrita, que podem ser coletados em pesquisas de campo, entrevistas, análises de documentos, entre outras estratégias, e que podem ser expressos em gráficos, tabelas, etc. Seu trabalho também pode se servir de uma compreensão daquilo que outros especialistas já construíram sobre o assunto, algo que melhora sua compreensão dos fenômenos e problemas em questão. Assim, um cientista político elabora o embasamento, teórico e retórico, de sua proposta com dados empíricos que mostram a facticidade de sua questão e com referências bibliográficas que mostram o lugar de suas teses na comunidade acadêmica.

Esse processo foi normatizado pela academia internacionalmente em diversos níveis de padrões técnicos e de hierarquia. Sendo os cursos de filosofia iniciados institucionalmente da mesma forma que os demais cursos, a área acadêmica da filosofia foi colocada sob os mesmos padrões técnicos de objetividade e eficiência que as demais áreas. Entretanto, enquanto nesses padrões se inserem tanto os diversos trabalhos dos antropólogos quanto as diversas pesquisas dos neurocientistas, poucos tipos de trabalho em filosofia podem se adequar sem grandes perdas a esses padrões. Geralmente se trata do tipo de trabalho da academia para a academia que grande parte dos leigos em filosofia entende como se fosse o único tipo de trabalho filosófico. A ignorância confunde o caso particular com a essência – eis o engano que conduz muitos à opinião de que a filosofia é estritamente aquilo que se faz em uma aula acadêmica de filosofia, e também ao engano de que a filosofia de alguma maneira ignora a sociedade. Aqueles que os leigos chamam de filósofos são mais adequadamente chamados de “ comentadores “, como são conhecidos no meio. Os comentadores são as figuras que se dedicam a estudar rigorosamente e repetidamente as obras de autores considerados filósofos importantes e a, com essa base, elaborar traduções, ministrar aulas, elaborar a narrativa da “ história da filosofia “, etc. Comentadores são acadêmicos que têm por função preservar a área acadêmica da filosofia, tanto impedindo que obras se percam com suas traduções e análises quanto impedindo que as obras antigas sejam linearmente substituídas pelas teses mais recentes, através de seus artigos que fazem as mais diversas comparações e interpretações das obras e das teses, ao mesmo tempo mostrando a eterna atualidade dos clássicos e mantendo a academia em movimento.

Preservar a área acadêmica da filosofia não é uma função trivial. A filosofia se ramificou e concretizou historicamente em áreas que operam e geram produtos sem a necessidade de um retorno rigoroso à filosofia ou à metafísica. Diante disso, nossa lógica de produção intelectual e prática muitas vezes passa a operar como um grande maquinário no qual não há lugar para o trabalho com a linguagem e com as ideias que se faz na filosofia. A falta de retorno aos fundamentos metafísicos faz com que o maquinário da sociedade frequentemente incorra em erros que precisam ser corrigidos com o espírito que deu origem à ciência, a filosofia propriamente dita. Esse retorno não pode ter seus frutos disseminados entre os diversos ramos da ciência e da arte sem a existência de uma área acadêmica e de instituições estabelecidas de filosofias clássicas e atuais que desenvolvem a filosofia e sua profundidade inesgotável como um fim em si mesmo, e os comentadores são justamente profissionais que mantém essa estrutura. Eis a razão pela qual Adorno defendeu a “ torre de marfim “, não como uma imagem de elitismo, mas com uma finalidade de possibilitar a crítica filosófica em um maquinário social de filosofias corrompidas.

Mesmo o trabalho dos comentadores, que se adapta razoavelmente aos padrões de referências bibliográficas, não se adapta de forma alguma à demanda por dados empíricos, principalmente porque a natureza de seu trabalho não diz respeito à sociedade ( ou a qualquer fenômeno ) diretamente. O trabalho de um comentador consiste em revisitar a bibliografia e fazer as funções mencionadas para que a área acadêmica da filosofia não se perca ou sofra estagnação em suas formas de discussão. O grande problema da opinião leiga sobre a área, porém, é que os comentadores não são o único tipo de intelectual que se associa à área da filosofia. Dentre os tipos mais claramente observáveis, existem também os educadores em filosofia, que tomam a própria prática de se ensinar filosofia como uma questão filosófica e que procuram dominar e aprimorar a arte do ensino, existem aqueles que passam pela filosofia como uma ponte para alguma outra área, buscando entrar em alguma área mais aplicada do conhecimento passando antes pela profundidade da filosofia, e existem ainda aqueles que pretendem escrever suas próprias obras que não dependem da autoridade de outras obras ou autores como condição de existência. Esse terceiro tipo caracteriza as figuras que acabam, posteriormente, sendo chamadas de “ filósofos “. Não educadores em filosofia, e não comentadores em filosofia, mas filósofos simplesmente e propriamente ditos. O trabalho filosófico propriamente dito não se adapta bem aos padrões mencionados de embasamento empírico e nem mesmo aos padrões de embasamento bibliográfico, pois em tais padrões está pressuposta uma relação de hierarquia entre o autor do trabalho e os autores dos clássicos. É um fato conhecido que as obras filosóficas de peso são destruidoras de dogmas e de paradigmas, que elas mostram o que foi ignorado e questionam o que é absoluto. Tamanha audácia e criatividade não é possível em um estado de submissão a autoridades intelectuais e a padrões técnicos. A liberdade na forma é um pressuposto para a liberdade no conteúdo – A forma é um conteúdo.

A distinção entre educadores em filosofia, comentadores de filosofia, os cientistas filosóficos e os filósofos propriamente ditos não é, na prática, absoluta. Um mesmo indivíduo pode realizar muitos desses ( além de outros ) papéis na área acadêmica de filosofia e na sociedade em geral. Entretanto, conceitualmente esses tipos são perfeitamente distinguíveis em suas propriedades, e muitos indivíduos se encaixam, na prática, perfeitamente em algum desses tipos, em função da forma especializada do modelo de formação acadêmica atual. A distinção clara ( conceitual ) entre esses tipos é metodologicamente importante. Trabalhos realizados sem essa espécie de clareza não realizam verdadeiramente nenhuma função de forma efetiva, e confundem a compreensão no meio sobre a vida intelectual filosófica. Por exemplo, comentadores que se passam por filósofos originais ou que discursam como se fossem especializados na filosofia propriamente dita ( que não é uma área ), em vez de se mostrarem como especialistas em comentário acadêmico de filosofia como de fato são, geram toda espécie de confusão no meio intelectual brasileiro. Após atuar por décadas em uma formação e em uma profissão que não tem por finalidade gerar obras filosóficas de grande impacto e profundidade mas sem ter clareza sobre isso, muitos ilustres comentadores reproduziram a opinião de que não existe e nunca existiu originalidade – isto é, o movimento de se tomar a própria consciência como autoridade. As obras dos clássicos são a contraprova empírica dessa opinião, tanto na profundidade de suas teses quanto nas consequências históricas decorrentes, a diferença de função e de impacto entre aqueles que escrevem sob a tutela alheia e aqueles que assumem integralmente a responsabilidade de pensar é historicamente demonstrada. Tratar a arte do comentário como se fosse a filosofia em si mesma é limitar todo um universo de possibilidades. Como tais comentadores são também professores e exemplos para os ingressantes na área de filosofia no Brasil, o status secundário e colonizado da filosofia brasileira se perpetua pela via do preconceito mencionado, além de muitos outros. Não se estimula no meio acadêmico brasileiro a prática filosófica da parresia.

Os educadores em filosofia têm como objetivo entender e dominar a arte da educação em filosofia. Isso implica – algo que se mostra muito explicitamente na rotina – que o objetivo de tais educadores não é produzir obras clássicas como a “ Crítica da Razão Pura “, ou fazer o tipo de análise direta das questões filosóficas que resulta nesse tipo de clássico, mas sim entender como é possível, por exemplo, transmitir o espírito da filosofia de Kant para uma sala de alunos do ensino médio. Esse tipo de profissional se adapta razoavelmente ao modelo acadêmico das ciências sociais, afinal se trata de um trabalho necessariamente relacionado a questões empíricas claras e com impactos sociais. Educadores filosóficos também são muito claramente importantes na elaboração de determinadas políticas públicas voltadas para a educação. Aqueles que estou chamando de “ cientistas filosóficos “, como o físico que se inicia na filosofia empirista antes das teorias científicas de sua área, realizam um trabalho científico profundamente filosófico, mas em última instância não elaboram obras filosóficas de peso, pois a filosofia os serve como parte do embasamento para outra finalidade, não como finalidade em si mesma. É importante notarmos que os padrões acadêmicos mencionados também não servem bem àqueles que transitam por múltiplas áreas. Mantendo o exemplo, o físico que parte da filosofia terá dificuldades para mostrar o embasamento de seus trabalhos dentro daqueles padrões – definidos em uma cultura de extrema especialização – porque os físicos especialistas muitas vezes não apreciam os argumentos filosóficos, e os comentadores de filosofia certamente não apreciam nenhum argumento da física, que desconhecem e ignoram como um todo por serem especialistas. Esse físico filosófico terá sempre que ocultar metade de suas referências dependendo do público para quem publica, caso queira se adaptar aos padrões vigentes. Isso é particularmente difícil quando uma reflexão filosófica leva o físico a perceber uma possibilidade de descoberta empírica, em vez do inverso – o sentido esperado e padronizado – porque a utilidade de sua pesquisa se mostrará em termos práticos ao longo de seu desenvolvimento, mas sua pesquisa apenas será aprovada e mantida se for reconhecida por físicos especialistas a partir da primeira impressão, da proposta de pesquisa que certamente não será completamente apreciada – independentemente de seu mérito.

Os pensadores que de fato criam obras próprias e atuais com a finalidade de levantar discussões filosóficas independentemente de serem acadêmicas ou não, os que foram e serão os filósofos propriamente ditos, não se encaixam nos padrões mencionados de pesquisa ou em qualquer outro. Existem obras como a “ Ética “ de Espinosa que não tem absolutamente nenhuma base empírica no sentido padronizado. Se trata de um clássico da filosofia que elucida questões profundas sobre a existência humana, mas que seria imediatamente recusado por um supervisor adepto dos padrões técnicos atuais. Existem obras como o “ Assim Falou Zaratustra “ de Nietzsche que sequer mantém o rigor argumentativo e a tentativa de fazer suas teses explícitas, obras que seriam reprovadas por um professor acadêmico tal como foram mal apreciadas pelos contemporâneos do autor, por algumas das mesmas razões pelas quais as obras metódicas de Espinosa foram mal apreciadas – os padrões de forma e de qualidade para as obras intelectuais são eles mesmos questionados e destruídos constantemente pelos filósofos, tanto quanto o dogmatismo. Em contrapartida, os profissionais que se habituam a usar sempre dos mesmos padrões criam ao longo dos anos cada vez mais dificuldade diante da ideia de que seus padrões técnicos são apenas convenções, e não normas da racionalidade em si mesma, não compreendem que suas convenções às vezes não são úteis. Nossas convenções técnicas são úteis enquanto são tomadas apenas como convenções úteis entre outras possíveis. Se nós as tomamos como regras da racionalidade para as quais não podem existir exceções, estamos no fundo sendo dogmáticos – ou sendo ludibriados por uma estrutura de produção massificada de artigos e pesquisas que limita severamente nossas possibilidades intelectuais. Afinal, a recusa das obras mencionadas foi feita em suas épocas de publicação não apenas em função da forma, mas também porque o conteúdo era politicamente insuportável.

Existem algumas noções utilizadas pelos comentadores e educadores em filosofia que simplesmente não se aplicam ao domínio dos filósofos e dos cientistas filosóficos, por conta das diferenças explicadas nos graus de adaptabilidade à estrutura acadêmica geral por parte de cada um desses tipos. Uma pesquisa, na definição utilizada em geral no meio acadêmico, é um exercício de busca, elaboração, comparação e interpretação de referências bibliográficas e empíricas. Esse exercício envolve a localização precisa do objeto de análise, a identificação ou formulação de um problema e a formulação de uma hipótese, que deverá então ser testada na continuidade da pesquisa, conduzindo assim o pesquisador a uma conclusão a partir da hipótese. O teste da hipótese, se for bem formulada a partir das fases preliminares de pesquisa ( geralmente estudos bibliográficos ) , é informativo independentemente da hipótese ser provada falsa, verdadeira ou inconclusiva. Se for mostrada falsa, isso abre o caminho para que o pesquisador teste outras hipóteses e a razão pela qual a hipótese se mostra falsa é em si uma descoberta – algo que Popper enfatizou muito e mostrou bem em sua filosofia da ciência . Se for mostrada verdadeira, obviamente algo foi descoberto, não apenas para o indivíduo mas para o meio acadêmico em geral. Se for mostrada inconclusiva, a descoberta das razões pelas quais uma conclusão não foi possível encaminham o futuro da pesquisa, possibilitando um exercício em partes para a análise de uma questão complexa. A compreensão do grau de complexidade da questão é em si uma informação valiosa, principalmente se tal complexidade estava sendo subestimada. Porém, na área acadêmica de filosofia, são realizados de fato estudos, em vez de pesquisas, estudos nos quais um indivíduo busca conhecer aquilo que já está arquivado e geralmente também discutido no meio.

A filosofia não funciona com hipóteses, mas diretamente com teses. Mesmo a pesquisa de um comentador, que não elabora nenhuma nova tese filosófica, não busca formular uma hipótese e testá-la, mas simplesmente defender uma tese de interpretação sobre alguma obra ou autor. Por exemplo, um indivíduo que “ pesquisa “ algo como o conceito de moralidade em Kant não está revelando ou elaborando dados novos para o meio acadêmico, os “ dados “ ( isto é, os livros de Kant ) permanecem tais como estavam. O propósito desse tipo de trabalho está apenas em se defender alguma interpretação ( geralmente não inédita ) das obras em questão, e sequer nesse sentido existe uma hipótese sendo testada. O orientador que aceita e direciona o trabalho, ou as revistas especializadas que aceitam ou recusam os artigos apenas admitem trabalhos que propõe algo considerado “ sensato “ em relação às obras. Por exemplo, um trabalho que buscasse entender se Kant foi um relativista moral seria de início recusado, pois os doutores responsáveis já leram extensivamente as obras de Kant e conhecem o domínio de temas viáveis de serem discutidos a partir da filosofia Kantiana. O resultado de uma pesquisa filosófica dessa natureza já é conhecida pelo orientador e pelo orientando de início ( do contrário sequer seria aprovada ), o trabalho consiste realmente na formulação de um texto com argumentos e citações organizados rigorosamente. De fato, os inúmeros projetos de iniciação científica em filosofia são apresentados como se fossem pesquisas com hipóteses, mas , como mostrado anteriormente, a área acadêmica da filosofia foi circunscrita aos mesmos padrões técnicos e institucionais das demais áreas. Se isso fosse diferente, as “ pesquisas “ seriam apresentadas como estudos com motivações e ganhos particulares que de fato são. O ganho desses estudos não está no potencial de descoberta, que é nulo ( diferentemente das pesquisas em ciências sociais, por exemplo ), mas no fato de que comentadores diferentes interpretam os textos filosóficos de formas diferentes, e o debate entre os comentadores mantém a área acadêmica ativa e populada por profissionais eruditos.

A filosofia não é uma ciência, muito menos uma ciência positiva. O valor de um trabalho filosófico no meio é dado por sua capacidade de despertar debates, sendo os trabalhos filosóficos considerados clássicos aqueles que iniciaram novos debates com suas teses originais que provocaram tais debates. A noção de pesquisa científica em filosofia é em si um erro – Não pode haver pesquisa nem ciência na filosofia, no exercício de meditação que questiona até mesmo as bases de nossa compreensão da racionalidade nem na prática de discurso que expressa os argumentos e conclusões obtidos em tais meditações. De fato, a própria definição de filosofia é um problema, uma questão. Deixarei essa questão de lado por hora, pois já temos estabelecido o suficiente para que eu possa explicar em termos positivos minha proposta metodológica. A questão da natureza da filosofia será explorada no desenvolvimento da parte principal do trabalho. Se tratando de um trabalho filosófico, não serão usados métodos empíricos e eu não sustentarei aqui a falsa equivalência entre a citação de fragmentos de texto e a exibição de evidências empíricas. Esta reflexão irá se desenvolver com base em meus estudos em filosofia ocidental e oriental, com a contribuição principal dos brilhantes estudos filosóficos de Heinrich Zimmer sobre a história da filosofia hindu, especialmente daquilo que se encontra na obra compilada por Joseph Campbell “ Filosofias da Índia “. A principal obra ocidental tomada como referência será “ O Ser e o Tempo “ de Martin Heidegger. Talvez pareça de início que afirmar algo sobre a narrativa de história da filosofia da academia eurocêntrica a partir das teses de dois autores caracteriza uma inferência apressada. Entretanto, deixo claro que não se trata de se fazer uma inferência, coletando casos particulares e tirando desse exercício uma categoria generalizadora. Se trata de mostrar no movimento das ideias desses autores suas respectivas críticas da racionalidade e o diálogo com suas respectivas tradições que cada um estabelece, e mostrar com esse exercício o quão grande é o potencial daquilo que se produziu fora da Europa sobre as questões filosóficas.

As grandes obras filosóficas sempre se apoiaram em outras. Esse é um dos fatores que gera muitas confusões em relação ao que significa criar uma obra filosófica. Uns são levados ao engano de que a originalidade consiste no abandono absoluto da riqueza intelectual dos clássicos. Outros cometem o engano já comentado de afirmar que não existe e nunca existiu originalidade ou criatividade. A chave para compreendermos aquilo que distingue as obras de filosofia por excelência daquelas dos comentadores e dos educadores, ou dos tratados científicos com fundo filosófico, está na distinção tão frequentemente esquecida entre influência e inspiração. Muitos comentadores falam, por exemplo, sobre a suposta influência de Schopenhauer sobre Nietzsche, de Platão sobre Agostinho, etc. Entretanto, não houve nesses casos influência, mas inspiração. Ter influência de uma obra ou autor significa adotar as teses alheias e colocar-se sob a autoridade da fonte em questão. Por exemplo, Marilena Chauí teve sua obra influenciada pela de Espinosa. A autora não escreve sobre os temas discutidos pelo autor sem a autoridade do mesmo. Entretanto, Espinosa não teve influência de Descartes, como frequentemente e inadequadamente se diz, mas sim foi inspirado por ele. Quando encontramos inspiração em uma obra ou autor, isso significa que encontramos em alguma obra grandiosa algo que já existe de forma latente em nosso próprio espírito, algo que nos impulsiona a elaborar uma obra própria, com respeito mas sem submissão à fonte. Por exemplo, Espinosa claramente foi inspirado pelo projeto de Descartes de uma ciência pura tão clara e repleta de aplicabilidades como a matemática. Sua “ Ética “ é escrita como se uns capítulos derivassem matematicamente dos outros. Entretanto, Espinosa não escreveu sob a autoridade de Descartes, mas sob sua própria, e não levou seu projeto da mesma forma que Descartes, mas por sua própria.

Assim como os tipos de profissional discutidos anteriormente não são absolutamente distintos na prática, a influência e a inspiração também não são na prática mutuamente exclusivas. Entretanto, como no caso anterior, esses dois tipos de relação com o conhecimento passado são conceitualmente distintos e a distinção metodológica é importante. Penso que nossa cultura padece de uma mistificação da criatividade, que é tomada como algo que simplesmente existe em alguns indivíduos e não em outros. Essa explicação obviamente pobre da criatividade ao mesmo tempo glorifica indivíduos como os “ grandes filósofos “ como se tivessem realizado algo super-humano e nos condena a não sermos criativos. Penso, por exemplo, que Marilena Chauí e Espinosa ambos tinham potencial para escrever clássicos, mas Chauí foi influenciada por Espinosa enquanto Espinosa buscou inspiração em Descartes. Uma trabalha em um meio de comentadores enquanto o outro escreveu seus trabalhos renegado pela sociedade. Não vejo razões para tratarmos a criatividade como algo inato que simplesmente surge ou não, quando existem tantos processos observáveis envolvidos. Quando dizemos que alguém é influenciado, a própria forma da linguagem expressa uma passividade do sujeito. Ao contrário, quando dizemos que alguém se inspirou, a linguagem expressa a atividade do sujeito. Neste trabalho não pretendo ser influenciado, mas buscar inspiração nas obras relevantes. Se o resultado será filosófico no sentido autoral ou não, essa talvez seja a verdadeira hipótese sob teste neste exercício. Independentemente disso, porém, a prática comum na academia de se limitar os trabalhos a serem influenciados, pressupondo como um a priori que o autor não tem a possibilidade de se inspirar e criar uma obra que tem seu valor e sua autoridade em seu próprio conteúdo, não é uma característica teórica ou científica da acadêmia, mas uma característica política. A exclusão das iniciativas potencialmente autorais em todas as etapas do processo de especialização acadêmica mantém hierarquias, dogmas, relações econômicas e, arrisco afirmar, até mesmo necessidades psicológicas de certos indivíduos.

Como antes explicado, a função dos comentadores não é nada trivial e tem uma grande importância, assim como aquela dos educadores filosóficos e de todos os demais tipos que não considerei. Entretanto, existe ainda uma função mais difícil de domar, o movimento crítico imprevisível e impalatável que ocorre no domínio dos filósofos propriamente ditos. Esse exercício não é realizado entre aqueles que trabalham inteiramente sob o status quo da academia, mas é um exercício fundamental para o desenvolvimento da cultura em seu aspecto filosófico. Posta essa compreensão, deve estar claro em qual sentido este trabalho é uma “ crítica da razão instrumental em três perspectivas “. Uma perspectiva é a da crítica desenvolvida no momento existencialista da filosofia ocidental, que ilustrarei através da reflexões de Heidegger. A segunda perspectiva é aquela da crítica desenvolvida na tradição budista da filosofia oriental, que ilustrarei através do que conhecemos da filosofia budista com a ajuda do trabalho de Zimmer, traduzido e compilado por Campbell após a morte do autor. A terceira perspectiva é a do autor deste trabalho, e também do leitor, que convido a recusar tal como eu faço a falsa objetividade da pressuposição de que não podemos pensar de maneira criativa por sermos quem somos – talvez o tipo mais tóxico de repressão política.

---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Nenhum comentário:

Postar um comentário