quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Sobre o corporativismo acadêmico (texto da apresentação)

O propósito desta apresentação é expor uma tese e propor um debate sobre a liberdade intelectual no meio acadêmico. A tese que venho apresentar é a de que o meio acadêmico contemporâneo é profundamente corporativista, que nas universidades existe uma estrutura de poder que racionaliza a reprodução cega de um determinado padrão através de noções dúbias de objetividade, subjetividade, rigor, racionalidade, etc. Para explicar essa tese, alguns passos são necessários.

Primeiramente, a definição de corporação. Uma corporação é um grupo de indivíduos ou um conjunto de instituições que partilha de interesses que são privados em relação ao público em geral. Em outras palavras, se trata de uma organização que defende os interesses de seus membros independentemente do que isso possa causar para aqueles que não são membros. A Coca-Cola, por exemplo, é uma corporação, porque é composta por um conjunto de empresas organizadas sob uma direção única. Essas empresas não concorrem entre si, como em um modelo de livre-mercado. Em vez disso, elas garantem que o grupo como um todo permanecerá bem sucedido no mercado através de medidas como a divisão de tarefas entre essas empresas, para que o grupo cubra uma grande quantidade de produtos distintos para ocupar o máximo possível do mercado, e também medidas como a compra de pequenas e médias empresas de fora do grupo que poderiam em algum momento concorrer efetivamente com algumas das empresas do grupo. Esse é o aspecto econômico de uma corporação, o monopólio de uma porção do mercado por parte de um determinado grupo que é capaz de exercer poder sobre o mercado em si. Grupos como esse não apenas atendem as demandas do mercado com seus produtos, eles influenciam a formação das demandas através da propaganda coordenada pelas diversas instâncias aparentemente autônomas que formam uma corporação. O fenômeno do consumismo não pode ser explicado sem a compreensão de que existem grupos de grande influência na esfera pública e no mercado que são interessados, por razões óbvias, na criação de uma cultura de consumo extremo.

Existe também o aspecto ideológico de uma corporação, que é frequentemente ignorado pelos estudiosos do tema. Isso ocorre porque se o lucro ou a obtenção de autoridade fosse o interesse único entre os membros de uma dada corporação, esse egoísmo forçaria esses indivíduos a alguma concorrência, cedo ou tarde. Corporações são mantidas na prática pelos benefícios exclusivos que essas associações oferecem, mas no discurso as corporações são mantidas por ideais homogêneos. Por exemplo, como poderíamos explicar a estranha mas comum associação entre uma determinada forma da religião cristã e uma determinada corrente de ideias liberais? O cristianismo chamado de fundamentalista e o neo-liberalismo são em seus fundamentos mutuamente exclusivos; No neo-liberalismo a caridade é facultativa e a desigualdade é considerada natural, enquanto no cristianismo a caridade é um dever e todos são nada mais e nada menos que filhos de Deus. No cristianismo a moral sexual e "os valores da família" são necessariamente um assunto público, enquanto no neo-liberalismo, muitas vezes chamado de anarcocapitalismo, todas essas questões devem ser deixadas por conta dos indivíduos e suas idiossincrasias. No cristianismo a propriedade é irrelevante diante dos bens do espírito, no neo-liberalismo o espírito somente se mostra em termos de propriedade. A explicação para essa associação que compõe os mais diversos grupos de políticos corporativistas ao redor do mundo variando da bancada evangélica no Brasil ao partido republicano nos EUA está no poder de união que existe em uma ideologia. Um grupo que é unido porque cada membro deseja lucrar e ganhar autoridade se desfaz assim que uns membros encontram uma oportunidade de ter sucesso sem os outros, enquanto um grupo que é unido também em torno de ideais como os cristãos muito dificilmente se dissolve, porque os lucros e os outros benefícios práticos conquistados pelo grupo passam a representar para seus membros e diante da sociedade o sucesso de uma visão de mundo. Assim o dinheiro é associado a uma supremacia moral e intelectual, e a profundidade dessa associação define a força das corporações que dominam o mercado e a política.

Mas como o meio acadêmico onde trabalham as nossas louváveis vanguardas intelectuais poderia ser comparado a uma corporação como a Coca-Cola? Como uma postura corporativista poderia existir na Torre de Marfim sem ser imediatamente criticada e repudiada pela nossa eminente classe de mestres e doutores? Um indivíduo começa a desconstruir a pureza do meio intelectual uma vez que percebe que as universidades são apoiadas em uma infraestrutura, tanto quanto quaisquer outras instituições. Uma universidade existe em um terreno, consome energia elétrica, contrata e rejeita profissionais, financia projetos, depende de parcerias econômicas e políticas, etc. No meio acadêmico ocorre circulação de capital, e esse capital é circulado em torno de determinados interesses – não poderia circular em torno de algo que fosse "um fim em si mesmo".

Qual é a finalidade de uma universidade? Não pode ser o cultivo do conhecimento como um fim em si mesmo, porque é inconcebível que tal finalidade seja financiada em uma sociedade capitalista. Uma instituição é financiada para produzir e regular. Uma universidade produz profissionais, produz tecnologia, produz teoria e produz arte. E que essa produção não seja subestimada! Uma das maiores fontes de renda dos EUA é justamente a propriedade intelectual. Uma produção de tamanha importância não poderia ser desorganizada, ninguém investiria uma quantidade enorme de recursos em uma instituição que apenas talvez alcance seus objetivos. Especialmente por estarmos tratando de uma produção associada ao conhecimento, qualquer instituição de ensino superior atual tem em sua estrutura uma burocracia e uma hierarquia destinadas a garantir os resultados dos cursos, das pesquisas, dos projetos de extensão, etc. Assim temos que um pesquisador deve garantir que seu projeto merece ser financiado, e também que um professor deve garantir que seus cursos resultem na formação de profissionais capazes de dar garantias tal como ele mesmo é.

Eu pergunto: como é possível que alguém dê garantias de que sua pesquisa trará resultados? Uma pesquisa é diferente de um estudo. Em um estudo um sujeito obtém conhecimentos que ele em particular não tinha, mas que já eram disponíveis a muitos outros indivíduos e grupos. Uma pesquisa, porém, tem como objetivo expor algo que até o momento não era conhecido. Se uma pesquisa realmente tem chance revelar algo desconhecido, ela também tem chance de não encontrar absolutamente nada – sua hipótese inovadora pode ser revelada tanto como imbecil quanto como genial, porque precisa ser afastada significativamente daquilo que já foi produzido na área em questão. Do contrário seria um estudo, uma retomada, uma revisão de literatura mas não uma pesquisa. A partir disso, eu repito a pergunta. Como alguém poderia garantir os resultados de sua pesquisa, se uma pesquisa é exatamente uma busca por algo novo, algo a acrescentar? Existem duas respostas, uma honesta e simples e outra que é desonesta e apenas soa complexa. A resposta honesta é que não é possível oferecer essa garantia porque a descoberta e a criação envolvem grande risco de fracasso. A resposta acadêmica é que através do estudo rigoroso das referências indispensáveis do meio intelectual um indivíduo se forma como um profissional metódico que avança o conhecimento sem chance efetiva de fracasso. Essa resposta é desonesta porque ela obscurece a distinção entre estudo e pesquisa; Um doutor em filosofia, por exemplo, publica um artigo comparando a filosofia política de Rousseau e a ética de Kant como se isso fosse o resultado de uma pesquisa. Não importa qual espécie de comparação seja essa, se trata de um estudo, de uma revisão, porque essas são teorias de autores que analisaram fenômenos, teorias já registradas no meio acadêmico. Porém, o fato dessa revisão conter um ou dois parágrafos de interpretação peculiar sobre os textos basta para que esse trabalho seja considerado uma pesquisa, uma pesquisa inovadora (interdisciplinar!) além de tudo. Pense por um momento nisto: Quem pagaria alguém para fazer uma pesquisa se uma pesquisa fosse apenas o estudo de algo já bem conhecido?

Um burocrata que não entende aquilo que está financiando. Nossa cultura, no que concerne ao trabalho e ao estudo, é uma cultura de especialistas. Especialistas se tornam autoridades em seus respectivos campos de atuação por uma questão de privação. Um determinado trabalho ou analise se faz necessário e apenas alguns indivíduos são capacitados para atender essa demanda. Uma vez que os administradores e os burocratas não são especialistas nas áreas que regulam, os critérios de racionalidade, objetividade, ciência, inovação e excelência são definidos pelos especialistas...

Chego com isso a outra pergunta: Como é possível que algum plano de ensino, seja lá qual for, garanta que ao menos um terço dos alunos submetidos a ele serão formados como intelectuais excelentes, criativos, metódicos e virtuosos? Acrescento ainda outra pergunta: Como alguém, seja lá quem for, seria capaz de definir em que consiste ou deve consistir a formação de inúmeros indivíduos? Assim como na pergunta feita anteriormente, existe para essa uma resposta honesta e uma resposta acadêmica. A resposta honesta é que não é possível que um plano de ensino tenha resultados previsíveis e que a própria ideia de formação é um tanto dúbia. Um professor que expõe seu conteúdo durante duas horas a uma turma silenciosa pode imaginar que inseriu determinados conteúdos nas mentes de todos os alunos que prestaram atenção e que um dos desdobramentos dessa inserção de conteúdos – pretensão que também existe em "dinâmicas dialógicas" – é a formação intelectual desses alunos. Pobres alunos e pobre professor! Para que tal transmissão ocorra ela precisa ser uma doutrinação e um esvaziamento, e é justamente a isso que professores e alunos se submetem, por covardia, ignorância e tolice. Como um indivíduo que conclui seu doutorado pode garantir que aquelas regras às quais se conformou durante tantos anos o transformaram em um intelectual do mais alto nível e não simplesmente em um reprodutor cego de uma estrutura de poder? Acredito que não preciso repetir o padrão.

Se a garantia de excelência que toda a estrutura de poder das universidades visa efetivar é fundamentalmente um erro, porque o fracasso faz parte do processo mas não pode ser reconhecido (financiado) o que essa estrutura está de fato garantindo? Qualquer coisa que seja conveniente aos especialistas encarregados de determinar o que significa objetividade e racionalidade em cada área de atuação. Em geral, aquilo que é mais confortável é aquilo que parece mais conveniente. Um sujeito com mestrado ou doutorado se submeteu durante um longo tempo a uma disciplina e a um esforço, sob a promessa explicita de que ele mesmo se tornaria como seus professores algum dia e sob a promessa implícita de que seus professores eram de fato competentes e bons exemplos. Por um lado, os resultados do envolvimento no meio intelectual são necessariamente incertos, sendo o intelecto diretamente conectado à vontade, e por outro a promessa que permeia esse meio intelectual é de uma garantia de que a excelência se encontra na academia.

Uma vez que o sujeito é colocado em uma posição (doutor) que não necessariamente merece ocupar, por ser um grande privilégio em relação a indivíduos que talvez sejam mais competentes, esse sujeito precisa, inclusive para manter a consciência em paz, garantir para si mesmo e para os outros que a hierarquia é válida e necessária e que ele merece sua posição. Como um sujeito, por exemplo, que não foi "formado" como um filósofo pode passar por filósofo? Trabalhando com indivíduos que foram enganados da mesma forma e que agora precisam enganar a próxima geração. Trocando seus trabalhos inférteis com colegas que também produzem trabalhos desse tipo. Formando alunos para que eles reproduzam essa estrutura. Recusando trabalhos que tenham qualidade mas que não se adequem aos critérios que regulam esse teatro. Construindo a ideia de que essa operacionalidade é prova de uma verdade. Mantendo uma posição de privilégio através de uma postura que se pretende como objetiva e científica. Em um conceito, corporativismo acadêmico. Um corporativismo baseado não no acúmulo de capital mas na ocupação de determinadas posições de autoridade intelectual, um corporativismo que faz o monopólio da ciência e da filosofia.

Um indivíduo qualquer que queira propor uma pesquisa de fato na universidade não irá encontrar um orientador, porque os professores irão recusar sua proposta inédita ou, pior, transforma-la em uma proposta comum através de "pequenos ajustes para que o projeto seja aprovado". A mercantilização do conhecimento, através das patentes no campo da tecnologia e da propriedade intelectual no campo das ciências faz com que a reputação e a sobrevivência de inúmeros indivíduos passe a depender, fundamentalmente, de mentiras, e disso se segue a conduta corporativa que preserva a qualquer custo a hierarquia obsoleta do meio acadêmico internacionalmente.

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